Há algum tempo o Supremo Tribunal Federal (STF) vem se socorrendo do instituto do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) para tentar resolver situações em que ocorre alguma violação aos direitos fundamentais previstos na Constituição que afeta de forma generalizada e massiva um grande número de pessoas.
Os direitos fundamentais são aqueles direitos reconhecidos pelo Estado, que protegem o indivíduo para que ele possa viver de forma digna dentro de uma sociedade. A proteção da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da Constituição Federal (CF), e os direitos fundamentais estão previstos no artigo 5º da CF que determina em seu “caput”, leia-se “início”, que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,” nos termos do disposto em 79 incisos para se ter ideia da importância e da abrangência dos direitos fundamentais. Além disso, existem os direitos fundamentais implícitos que não estão escritos na CF, mas que são subentendidos das normas que definem os direitos e garantias fundamentais expressas, como por exemplo, o direito à memória e à verdade, e os direitos fundamentais que decorrem dos Tratados Internacionais celebrados pelo Brasil.
Esse instituto jurídico obviamente não decorre do direito inglês, do direito francês, do direito alemão ou italiano, pois felizmente essa violação massiva e generalizada dos direitos fundamentais não ocorre nesses países bem mais desenvolvidos do que o nosso, e que geralmente servem de paradigma para as nossas leis, julgamentos e arbitragens. Ele veio de um outro país latino-americano com alguns problemas bem parecidos com os do Brasil, é oriundo da Colômbia, criado pela Corte Constitucional Colombiana.
Conforme reproduzido em Boletim do STF em Foco, os requisitos que caracterizam o ECI, elaborados pelo Tribunal Constitucional da Colômbia, “são a) a ofensa massiva e generalizada de direitos fundamentais que afetam número significativo de pessoas; b) a prolongada omissão das autoridades quanto ao cumprimento de suas obrigações para garantir os direito fundamentais ou a adoção reiterada de práticas inconstitucionais; c) a ausência de medidas legislativas e/ou administrativas necessárias para evitar afrontas aos direitos fundamentais; d) a existência de problema social cuja solução demande a intervenção de várias entidades, requerendo a adoção de conjunto completo e coordenado de ações; e) se todas as pessoas afetadas pelo mesmo problema ajuizassem ações individuais para tutela dos seus direitos, produzir-se-ia grande congestionamento judicial”.
O reconhecimento de um ECI de modo algum visa afrontar os poderes legislativo e executivo. Pelo contrário, visa fortalecer a democracia e assegurar que os direitos fundamentais das pessoas e a CF sejam respeitados. Não se trata da elaboração de algo que seria uma lei, mas sim uma intervenção do judiciário em políticas públicas para que os direitos constitucionais sejam concretizados. O ECI visa destravar bloqueios institucionais e diminuir a burocracia tão nefasta para a efetivação dos direitos fundamentais.
Com o reconhecimento do ECI, há em última instância a atuação conjunta dos três poderes, que deverão se mobilizar e trabalhar para que as determinações do STF sejam cumpridas.
Conforme publicado no próprio site do Supremo Tribunal Federal, “A declaração de um estado de coisas inconstitucional permite que o Poder Judiciário entre em diálogo com os demais Poderes, estipulando e acompanhado medidas em busca da efetivação de direitos fundamentais. Conclui-se que a introdução de um novo instituto no ordenamento jurídico brasileiro é positiva desde que traga efetivos resultados à sociedade já tão carente de seus direitos básicos”.
Ele já foi e está sendo utilizado pelo STF em diversos julgamentos de ADPFs (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), em que se alegam uma massiva omissão inconstitucional que viola os direitos fundamentais de forma grave e contínua. ADPF é o nome da ação proposta perante o STF visando evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultando de ato ou omissão do poder público.
A primeira vez que o plenário do STF reconheceu o ECI foi em 2015, no julgamento da ADPF 347-mC, cujo mérito foi apreciado recentemente no final de 2023. Naquela ocasião, o STF ao examinar a possiblidade de utilização do instituto do ECI rechaçou que houvesse uma violação do princípio da separação dos poderes.
Vale salientar que nessa ADPF 347 houve o reconhecimento do ECI em razão da violação reiterada aos direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro, e foi determinado que no prazo de 6 (seis) meses, o governo federal elabore um plano de intervenção para resolver a situação. Parabéns pela decisão, mas com o sucateamento do sistema prisional brasileiro, não considero minimamente factível que um problema tão grave seja resolvido em tão pouco tempo, ainda mais que muitas obras e investimentos precisariam ser realizados, o que demanda tempo, dinheiro e vontade política. Todavia, pelo menos o STF deixou claro que o problema existe e precisa ser resolvido. Receio que ao invés de melhorarem o sistema prisional, acabem por soltar mais criminosos que voltarão em grande número a práticas novos crimes.
Também foi reconhecido, pela ministra Cármen Lúcia, na ADPF 760 e na ADO 54, o ECI quanto ao desmatamento ilegal da Floresta Amazônica, também chamado como “estado de coisas ecológico”, e o voto da ministra foi no sentido de que a União, os órgãos e entidades federais competentes apresentem um plano específico com medidas a serem adotadas para a retomada da fiscalização ambiental e combate de crimes no ecossistema, resguardando os direitos dos povos indígenas. Esse plano deveria conter um cronograma com metas, objetivos, prazos, monitoramento, dotação orçamentária e demais informações necessárias para um planejamento até dezembro de 2023, todavia essa ADPF ainda aguarda pauta para julgamento.
Infelizmente, enquanto essa ADPF aguarda julgamento, continuaram as mortes dos yanomamis, os garimpos, a desnutrição, a malária na região amazônica. Foram 309 mortes entre janeiro e novembro de 2023, e até agora ainda não foi publicado o número total de mortos e o genocídio yanomami continua a acontecer, mas pouco se fala a respeito.
Há também a ADPF 973, mediante a qual se busca o reconhecimento do ECI em razão do racismo estrutural e institucional ao qual a população brasileira é exposta. Basta ver o número de afrodescendentes em comparação com brancos ocupando cargos nos primeiros escalões dos governos em suas três esferas, ou o número de afrodescendentes ocupando cargos de ministros no STF e o STJ para ver que há uma imensa falta de representatividade dos afrodescendentes nas instituições públicas, que os cargos públicos são distribuídos na maior parte das vezes para homens brancos. Afrodescendentes, por mais preparados que sejam, não tem a mesma sorte. Aliás, até mulheres de qualquer etnia em cargos no primeiro escalão são raridade. O Brasil continua excludente, machista, racista, o “todos são iguais perante e a lei, sem distinção” ainda é um ideal pouco concretizado pelos detentores do poder.
Outras ADPFs que tratam sobre o ECI são ADPF 918, que busca o reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional da política nacional de cultura”; a ADPF 983 que busca o reconhecimento ECI na tributação dos combustíveis”; a ADPF 989 que busca a declaração do ECI relacionado à realização do aborto nas hipóteses previstas em lei, pois em razão de ações e de omissões governamentais o acesso ao aborto legal estaria sendo restringido; e a DPF 635 que busca o reconhecido do ECI em razão da violação massiva dos direitos fundamentais praticados no estado do Rio de Janeiro no que tange a crescente letalidade da atuação policial, que estaria voltada sobretudo contra a população pobre e negra.
Como se vê, as ADPFs acima mencionadas tratam de temas e problemas que saltam aos olhos, e é uma pena que não furem a fila das pautas de julgamento. Ademais, ainda que elas fossem julgadas rapidamente e que houvesse o reconhecimento do ECI nelas postulados, as determinações do STF dificilmente serão cumpridas em um curto espaço de tempo, pois os problemas decorrem da tenebrosa situação estrutural do país, e há muita divergência política com relação a esses pontos. Mesmo assim, considero louvável que o STF esteja deixando claro para todos a violação aos direitos fundamentais que grande parte da população brasileira vem sofrendo há muito tempo, e determinando medidas, que se não houver vontade política, receio jamais serão cumpridas. Fica pelo menos o registro histórico da situação do Brasil e a prova de que seus governantes estavam bem cientes das violações aos direitos fundamentais.
Foto da Capa: Marcelo Camargo | Agência Brasil