Imagino que a esta altura todos aí ou já tenham ouvido falar ou já tenham assistido à adaptação seriada de O Eternauta que estreou na Netflix na última semana de abril e provocou durante um breve período aquele tipo de burburinho geral que era comum na era da TV aberta, em que todo mundo parecia estar assistindo à mesma coisa devido à falta de opções disponíveis nas grades dos poucos canais à disposição. Estrelada por Ricardo Darín e pelo quase-gaúcho Cézar Troncoso (a Zero Hora já foi mais eficiente em produzir essas pautas, estou até estranhando), a série é a adaptação de uma obra em quadrinhos publicada originalmente entre 1957 e 1959 na revista Hora Cero – imagino, aliás, que seja daí que meu amigo e colega colunista Pedro Gonzaga tenha tirado o nome de seu espaço semanal nesta plataforma.
O Eternauta é a narrativa de Juan Salvo, personagem que certo dia aparece diante de um roteirista (o próprio Oesterheld) na Buenos Aires dos anos 1950 e diz ter vindo do futuro, talvez de outra dimensão. Passa, então, a contar o que viveu até chegar ali. Certa noite de dezembro, uma neve mortífera caiu sobre Buenos Aires, matando imediatamente aqueles tocados por ela. A partir daí, Salvo, sua família e um grupo de amigos que havia recebido em casa para rodadas de truco precisam entender o estranho fenômeno e garantir sua sobrevivência. Para evitar o contato com a neve mortal, Salvo sai à rua usando o traje de isolamento improvisado que se tornou a imagem icônica associada ao quadrinho, com o rosto do personagem coberto por uma máscara de mergulho submarino. À medida que Salvo e outras personagens que vão aparecendo na história descobrem mais detalhes sobre o que está acontecendo, mais a narrativa mergulha em temas recorrentes da Ficção Científica, como invasões alienígenas, viagens no tempo e viagens interdimensionais. Uma ressalva: a sinopse que ofereci aqui é do quadrinho, não da série, que faz algumas modificações substanciais na narrativa, embora se mantenha fiel ao espírito da obra, ao menos nesta primeira temporada.
Escrito pelo roteirista Héctor Germán Oesterheld, o quadrinho é uma das referências inescapáveis da cultura argentina e teve, na verdade, três encarnações ao longo do tempo. A primeira série, dos anos 1950, foi desenhada por Francisco Solano López. Uma década mais tarde, Oesterheld produziu o que hoje se chamaria de “remake” com desenhos do mitológico artista Alberto Breccia, a partir de 1969. E, finalmente, uma “parte dois” outra vez com desenhos de Solano López, veio a público a partir de 1976. Ao final dessa segunda série, Oesterheld, então já vinculado ao grupo guerrilheiro Montoneros, encontrava-se na clandestinidade, e Solano López recebia os roteiros em envelopes que chegavam a suas mãos após intrincadas operações – ao ponto de o próprio artista já ter declarado que não sabe se os últimos capítulos foram realmente escritos por Oesterheld, que viria a ser um dos desaparecidos do regime argentino, em 1977.
A esta altura, devido à boa repercussão obtida pela série da Netflix, muito já se falou sobre O Eternauta e a vida trágica de seu criador. O desaparecimento não apenas de Oesterheld, mas de suas quatro filhas e de seus genros. Também já se mencionou o quanto, a cada nova encarnação, o escritor foi dando ao quadrinho um tom mais declaradamente político, em resposta ao regime de exceção do momento em que a história estava sendo publicada – na primeira versão, a chamada Revolução Libertadora que derrubou Perón e se cristalizou como ditadura entre 1955 e 1958; no caso do “remake”, a ditadura militar da Revolução Argentina instaurada por Juan Carlos Onganía, entre 1966 e 1973; e na Parte 2, o golpe da hiena sanguinária Rafael Videla a partir de 1976.
Também muito já se discutiu o quanto a própria estrutura da narrativa apresenta variações sutis do modelo clássico das ficções científicas tradicionais. Para começar, a subversão da figura de um herói que concentra a atenção (Salvo pode ser considerado o protagonista nos primeiros episódios da narrativa, mas logo sua figura dá lugar ao esforço coletivo exigido para sobreviver ao colapso). A própria natureza da ameaça também foge do modelo, com a população resistente descobrindo que o inimigo que está enfrentando é, na verdade, apenas um patamar em uma estrutura hierárquica, cada uma a serviço da anterior, com os verdadeiros responsáveis pela invasão do planeta permanecendo ocultos e fora do alcance enquanto outras espécies fazem o trabalho sujo seguindo ordens.
Como eu disse, muita gente já discutiu em mais profundidade esses tópicos, então apenas os menciono de passagem, porque o que eu gostaria de partilhar com vocês aqui é uma impressão, quase uma perplexidade que tenho e que parece ter sido outra vez confirmada com o sucesso da série. Tanto Brasil quanto Argentina tiveram flertes episódicos com os gêneros de literatura e de entretenimento de massa, mas enquanto no Brasil essa vertente foi continuamente relegada a uma posição marginal devido ao seu pretenso caráter escapista (e, em certas épocas, “alienante” ou “colonialista”), na Argentina a apropriação desses gêneros foi mais amplamente bem-sucedida, com a FC, o policial e a fantasia contaminando ao longo de boa parte do século XX a produção mainstream de alguns dos mais consagrados autores do país. Sendo mais direto: enquanto no Brasil, durante um bom tempo, o policial foi um exercício de poucos e a FC foi relegada a um nicho restrito, na Argentina esses e outros gêneros apontaram caminhos frutíferos para os melhores trabalhos de alguns de seus grandes criadores.
Digo que estou pegando como “gêneros de massa” vertentes que têm suas especificidades e definições e talvez devessem ser separadas, como a Ficção Científica, a Ficção Fantástica (incluindo o horror), a narrativa policial, mas este não é um artigo acadêmico, está mais para um ensaio livre, então me permito olhar para elas em bloco baseado no fato de que ao longo do tempo todos esses modelos de narrativa foram relegados a um papel secundário no Brasil. Tanto é assim que é fácil apontar algumas poucas exceções que praticaram cada tipo de gênero ao longo do último século.
Não é que no Brasil alguns gêneros não tenham aparecido e na Argentina sim, muitas vezes encontramos experiências correlatas simultâneas em ambos os países, mas no Brasil uma bolha que transita entre os extremos do realismo conteudista e do experimentalismo formal sempre relegou essas experiências a segundo plano. Em 1940, por exemplo, Adolfo Bioy Casares, Jorge Luís Borges e Silvina Ocampo lançaram uma Antologia de Literatura Fantástica que se tornou um dos grandes e influentes marcos editoriais da Argentina. Na mesma década, em 1947, estreou em livro no Brasil Murilo Rubião, que lançou O Ex-Mágico para repercussão quase nula – o autor é até hoje tratado como o inquietante ponto fora da curva na “evolução artística” da literatura nacional, dada sua dedicação ao fantástico. Rubião só viria a conhecer reconhecimento de fato três décadas mais tarde, com o lançamento de O Pirotécnico Zacarias – numa época em que o Realismo Fantástico era a nova onda da literatura latino-americana e saudada pelo seu impulso renovador de casar a seriedade do realismo com o potencial alegórico e simbólico da pura imaginação.
Outro escritor morto pela ditadura de Videla por suas conexões com os Montoneros foi Rodolfo Walsh, autor de Operação Massacre e Quem Matou Rosendo?, obras-primas do jornalismo literário argentino, antes de dar a guinada em direção à reportagem de denúncia do arbítrio de seu país, foi um consistente autor policial. Walsh criou, a partir de 1953, histórias protagonizadas por um “detetive” chamado Daniel Hernández, que na verdade é um revisor de livros, cuja atenção minuciosa a detalhes associada a uma inteligência lógica natural o torna um personagem perfeito para resolver crimes. Walsh também criou um outro personagem investigador, o Delegado Lorenzi. Todas as suas histórias do gênero foram publicadas no Brasil na década de 2010 pela Editora 34, aliás.
Embora hoje seja inegavelmente mais conhecido por seu trabalho jornalístico, Walsh obteve nos anos 1950 um sucesso continental maior do que, por exemplo, Luis Lopes Coelho, um dos pioneiros do policial no Brasil, que publicou em 1957 o primeiro de seus livros de contos de mistério, A Morte no Envelope, a primeira série de narrativas com o delegado Doutor Leite, investigador recorrente do escritor. Coelho até obteria sucesso uma década mais tarde com A Ideia de Matar Belina (1968), o terceiro livro da série, mas após sua morte suas narrativas caíram no esquecimento e, embora reeditadas ocasionalmente, não têm a mesma repercussão de um Rubem Fonseca, digamos, para citar outro dos desbravadores nacionais.
Nos próprios quadrinhos, o ambiente de O Eternauta, fica claro que o espaço para a experimentação com gêneros de massa era maior no país vizinho. Mais ou menos na mesma época em que Maurício de Souza criava a Turma da Mônica – e assim, definia o quadrinho mainstream brasileiro pelas próximas décadas, um autor como Oesterheld não havia se limitado apenas ao Eternauta, mas havia escrito outros trabalhos considerados clássicos da FC na Argentina, como Mort Cinder, em parceria com o já citado Alberto Breccia.
Resumindo meu argumento de base: enquanto na Argentina parte considerável da literatura dita “séria” apropriou-se dos chamados “gêneros de massa”, subvertendo-os sem medo para propósitos artísticos e até políticos, no Brasil esses gêneros foram relegados a experiências de nicho pouco consideradas no longo panorama geral ou, pior ainda, tratadas como literatura menor, repetição de pouco valor de modelos estrangeiros (como se o Romance Realista não fosse ele próprio um desses modelos), histórias de escapismo alienante que desviavam a atenção do leitor dos problemas reais de seu país. Antonio Candido, por exemplo, unanimidade geral entre os intelectuais brasileiros que pensaram a literatura, chama, no ensaio Literatura e Subdesenvolvimento, a cultura de massa de uma “catequese às avessas” que instila a ideologia do imperialismo estadunidense. Ou, como melhor define meu amigo Samir Machado de Machado no ensaio O Entretenimento é um Projeto de País, publicado na edição 204 da revista Piauí (setembro de 2023):
“De certo modo, a literatura brasileira sempre foi assombrada pela tarefa de nos definir como país, dando preferência a uma literatura de visão realista nacionalista. Enquanto isso, aquelas que se baseassem no arrebatamento do enredo ou na emoção recorriam a sentimentos e sensibilidades rebaixados pelo ideário iluminista, para o qual a racionalidade era a única solução de todos os problemas humanos. Vemos ecos disso até hoje, com uma vertente que valoriza a escrita enquanto experiência pessoal ao mesmo tempo que interdita parte da literatura de entretenimento, no momento em que exige do escritor que só fale sobre si mesmo porque não crê que poderia compreender o outro em profundidade.”
E por que isso aconteceu assim? Há algumas hipóteses. Em Extensão, Desenvolvimento, Envolvimento, texto publicado por Roberto de Souza Causo como introdução de sua coletânea As Melhores Novelas Brasileiras de Ficção Científica, o autor analisa a novela e a noveleta, gêneros de extensão intermediária entre conto e romance, que são um ambiente clássico da Ficção Científica em outros países e hoje quase inexistentes no Brasil. Ao fazer isso, Causo especula que provavelmente a inexistência de um mercado editorial diversificado em um país com alto índice de analfabetismo explique os constantes insucessos de revistas que pretendiam ser o equivalente nacional das chamadas “pulps” norte-americanas, mas que só duraram poucos números e não tiveram continuidade – Causo cita entre elas a série Novela, publicada pela Globo nos anos 1930, trazendo histórias policiais, góticas e outras narrativas mais tradicionais. A revista era editada por Erico Verissimo, uma faceta de sua carreira hoje pouco conhecida e menos estudada. Recomendo o texto de Causo, aliás, como um bom e preciso levantamento para quem quiser travar contato com as heroicas, mas pouco sucedidas, tentativas de emplacar uma revista com narrativas de entretenimento popular no Brasil.
Ok, a grande taxa de alfabetismo do Brasil ao longo de mais de um século pode ser uma explicação, mas o mesmo Causo, em outro artigo, levanta um outro ponto interessante para se pensar essa diferença de trajetórias entre nós e os hermanos. No texto Intersecções na Ficção Científica Brasileira, introdução a outra de suas coletâneas de narrativas nacionais, Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica: Fronteiras (2009), Causo data a fundação da Academia Brasileira de Letras como marco de um fenômeno de ruptura entre o gosto da elite e o gosto popular:
“Machado de Assis ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras em 1879, instituição que marca um primeiro afastamento entre as práticas literárias mainstream e as populares, enquanto antes, nos folhetins, elas se misturavam mais. Passa a haver uma literatura aceita e uma rejeitada pelo establishment. As formas aceitas passam a se confundir cada vez mais com o pensamento e as atitudes das elites. O fosso entre uma e outra se alarga ainda mais com o Modernismo de 1992”, escreve Causo.
De fato, engajados em um movimento de extensão internacional que via na revolução da forma o equivalente da revolução política, os Modernistas e muitos depois deles no Brasil desprezaram obras que se vinculam a algum gênero já estabelecido e demarcado com seus códigos mais ou menos rígidos. Daí o desdém pela literatura de aventura, pelo policial, pelo horror, etc. Enquanto isso, ali no outro lado da fronteira, parte dos autores de elite (intelectual, social e até financeira) da Argentina não olhava para esse tipo de narrativa com os mesmos olhares desaprovadores, em especial aquele que se tornaria um monólito no horizonte: Borges. Como escreve Laura Cordaro em um artigo para a revista argentina Zoom, o gênero..
“Por volta da década de 1940, ganhou maior importância, consolidando-se em resposta a ideias e interesses que surgiram em anos anteriores. A produção do policial da época estava nas mãos de escritores pertencentes à “alta cultura”, entre os quais destacamos Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Leonardo Castellani, Manuel Peyrou, Enrique Anderson Imbert e outros, que formavam um grupo engajado nas concepções clássicas inglesas do romance-problema (que Todorov chamava de “romance-jogo”, o crime como quebra-cabeça e enigma puramente racional). Ao mesmo tempo, com Borges, cujo interesse pela ficção policial havia surgido na década de 1930, o gênero tornou-se central. Ele apresentou histórias policiais com características distintivas que iam além do tradicional e ousavam até mesmo transgredir os limites do gênero no sentido mais estrito, como pode ser visto principalmente em alguns contos de Ficções (1944)”. (tradução minha)
Claro, o panorama nos dois países a esta altura mudou bastante. Não apenas a narrativa contemporânea latino-americana tem abraçado o fantástico como um elemento para trabalhar questões do passado violento e das contradições contemporâneas do continente (com mulheres capitaneando o fenômeno, como já escrevi aqui: como o entretenimento no Brasil deixou de ser palavrão para alguns escritores que têm se destacado no panorama atual. Nessa comparação muito breve e ligeira (que, no entanto, deixo como possível início para quem quiser se aventurar num trabalho acadêmico de fôlego), o que me parece claro é que no Brasil o pensamento artístico e crítico hegemônico se voltou para um determinado tipo de visão: encarar os formatos já estabelecidos como limitadores da experiência estética devido a suas regras mais ou menos dadas de início. Encaram-se, assim, esses modelos como entretenimento escapista incapazes de produzir a verdadeira arte transcendente porque a arte não se enquadra em modelos etc. Já na Argentina, viu-se ao longo de mais de um século que escritores de certo prestígio voltaram-se a esses formatos justamente com a vontade de reconfigurá-los para que tenham algo a dizer para o país de terceiro mundo para o qual foram transferidos.
Acho que uma boa forma de saber quem está certo é justamente garantir a produção de mais narrativas fora do molde realista. Algumas, por esse ângulo, darão muito certo, outras não. Mas não é assim com todo tipo de narrativa?
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Foto da Capa: Divulgação.