Gilles Lipovetsky é um pensador singular, que analisa questões inquietantes do nosso tempo com generosidade e nos faz pensar além. Ser filósofo e francês contribui – Liberté, Egalité, Fraternité – mas há coração na sua fala, na sua produção intelectual. Tive aulas com ele na FAAP de SP e tenho agora também no pós-graduação em Ciências Humanas, que estou cursando na PUCRS. Lipovetsky aponta que precisamos fazer a transição de uma sociedade que há séculos foca na produção de bens de consumo para uma sociedade que dará valor à produção de bens humanos. Isso significa cuidar do outro, cuidar da vida e ter de bônus a tão almejada felicidade. Em seu novo livro, Le nouvel âge du kitsch: Essai sur la civilisation du “trop”, lançado recentemente na França (ainda sem tradução no Brasil), estabelece uma trajetória minuciosa e lúcida do kitsch como reflexão e desafio para se conquistar sobriedade, que urge neste nosso tempo de fronteira com o não retorno na demanda climática. “A felicidade exige sobriedade”, diz.
Fiquei pensando na questão do hiperconsumo – não só material, mas também psicológico, ao qual entregamo-nos desvairadamente (1) –, que talvez tenha relação com a descomunal energia que nos move e se transforma a cada segundo em nós, o que nos coloca à mercê de desejos irrefreáveis e irrealizáveis por todo. Nosso corpo é a supremacia do kitsch, o exagero às raias do desaforo. Vejamos: como é possível que 90 trilhões de átomos se movam para ir à feira comprar batatas ou que, ao mesmo tempo que 400.000 átomos radioativos estejam se desintegrando em nós para formar outros átomos, possamos estar num estádio urrando pelo gol do nosso time? Como é possível uma harmonia em nossa mente quando temos 85 milhões de neurônios ocupados em fazer, cada um, suas cerca de 10 mil sinapses particulares, a cada segundo? O exagero é a nossa casa. Nunca será possível satisfazer a oferta do nosso corpo: cérebro e coração explodindo em sinapses e conexões dentro e fora da pele, carne e alma se digladiando e conciliando. Só quando percebermos a dimensão desse mistério e milagre que nos habita, teremos consciência de tal ordem de excesso para alcançarmos a sobriedade.
Em 2021, na primeira grande exposição de Damien Hirst em Paris, Cerejeiras em flor, dedicada à mãe, na Fundação Cartier, acho que o artista acendeu uma luz para focarmos na essência: a abundância e o amor. No Japão, a floração das cerejeiras é o exagero escancarado também do corpo da planta, presenciado anualmente por toda a população, a imagem da abastança e da fugacidade, da explosão da vida e da brevidade da matéria, da morte como destino – vida e morte sempre unidas, em retroalimento. O bad boy da arte contemporânea dedicar à mãe a floração das cerejeiras é um manifesto de amor à Vida. Dos bichos mortos em tanques de formol ao útero vivo do planeta gerando flor, Damien Hirst nos revela um renascimento. A ideia talvez tenha também inspirado suas ações filantrópicas durante a pandemia, quando, por exemplo, assinou, de próprio punho, milhares de gravuras do seu quadro do coração de arco-íris com asas de borboletas, para que todo o resultado das vendas fosse revertido ao enfrentamento do vírus.
Venho insistindo no amor. Outro filósofo francês, Luc Ferry, também o defende como ato político há mais de uma década: “Amor é transcender o eu em direção ao outro”. Penso que o amor é a melhor forma para administrar o excesso, a “selvageria”, digamos assim, do nosso corpo, para repousarmos em dadivosa fartura. No amor conquistamos a sobriedade para cumprir nossa missão enquanto humanos. Desde que nos erguemos sobre as duas patas, é nossa a tarefa de decifrar o eterno enigma; e estamos aptos, tudo já foi posto, já sabemos (saber tudo, talvez nunca venhamos a saber mesmo). Encontramos respostas reconhecendo o amor no outro e do outro, como o amor das árvores-mães que se conectam com as árvores-bebês através da rede de micélio, fornecendo alimento e reduzindo seu próprio tamanho de raiz para dar espaço a seus bebês (2 e 3). O outro é a nossa imagem e semelhança – em suma, nós mesmos, nossos filhos, os seres vivos animados e inanimados e todo o corpo cósmico. O Divino em todos nós. Conectados, somos sóbrios e felizes.
- (…) o excesso se acha no hiperconsumo, na avalanche de informações, na multiplicidade de formas de gozo que essa nova Era nos traz. É preciso um olhar atento, porém: se, por um lado o excesso parece nos bombardear, por outro, somos nós que produzimos excessos na busca de tatear novos limites, recebendo sempre a resposta — Mais, Ainda… O excesso não se satisfaz. A cada resposta, há uma nova demanda. Nesse sentido, Lipovetsky aponta uma íntima relação do kitsch e seu excesso com a lógica de inovação permanente do capitalismo. É preciso produzir e inovar continuamente a fim de gerar novos desejos. Desejo do quê? Do novo. (…) Leia Aqui.
- (…) Esta nova compreensão científica de comunicação entre as árvores fornece importantes implicações para nós. Por exemplo, quando as árvores-mães são feridas ou estão morrendo, por conta do desmatamento ou algum fator não natural, elas enviam sua “sabedoria” para a próxima geração. No entanto, com o desmatamento de áreas inteiras, as árvores não podem fazer isso e toda a “sabedoria” que vem sendo transmitida por árvores mais velhas para mais jovens há milênios é exterminado de uma só vez. Para alguns, estas informações podem ser notícia recente, no entanto diversas culturas e povos tradicionais já intuíam esta forma sofisticada de comunicação na floresta. Povos indígenas e comunidades que vivem mais próximas da terra afirmam que todos os seres estão conectados e que os seres da floresta, como as árvores, conversam entre si. Através de suas complexas cosmologias, povos indígenas foram capazes de construir uma sabedoria que pode ser considerada como uma ciência nativa. Comunidades tradicionais não usam o método científico ocidental que conhecemos, no entanto, sua experiência também gera uma ciência, pois foi através de várias gerações de atentos observadores que esses povos construíram seu precioso conhecimento. E é através de sua rica mitologia que os povos originários transmitem esta sabedoria às gerações mais jovens. Atualmente a sociedade parece ter adormecido para as histórias que contêm verdadeira sabedoria e conhecimento. (…) Ao observar os complexos sistemas de interconexão da natureza veremos que não é através da competição que a evolução acontece, mas sim da cooperação. Quando entendermos este fato, iremos prosperar como uma comunidade inteira, humanos e não humanos. E quem sabe até não iremos descobrir que todos os seres da Terra estejam conectados, não pelo micélio, mas por forças que a ciência tradicional não é capaz de provar. O que acontecerá se ousarmos aprender com as árvores? Leia Aqui.
- Outra boa leitura é o livro A vida secreta das árvores, de Peter Wohlleben (Editora Sextante, 2017), engenheiro florestal alemão que aliou seus 20 anos de experiência às descobertas científicas para examinar o dia a dia desses seres. O livro se tornou um fenômeno na Alemanha, entrou para a lista de mais vendidos do The New York Times e foi traduzido para 18 países. É uma viagem surpreendente e fascinante pela vida das árvores e das florestas, um convite a repensarmos nossa relação com a natureza.
Fotos: Prudence Cuming Associates. Damien Hirst and Science Ltd. All rights reserved, DACS 2021