Ano novo, governo novo, e há uma série de coisas a serem discutidas a sério nos anos que teremos pela frente com Lula na presidência. Terá o novo governo força política suficiente para tocar seus projetos sem ser paralisado por um Congresso repleto de uma oposição hostil? O que esperar de figuras ministeriais de passado e currículo duvidosos como José Múcio Monteiro, a quem foi entregue o comando da Defesa (e que acha candidamente que as manifestações golpistas do último mês, com direito a intimidação e terrorismo, são “democráticas”). Também não vi muita gente comentando se acha uma boa ideia ter de volta ao quadro como Ministro da Previdência Social Carlos Lupi, nomeação feita para compor base de apoio, entende-se, mas poucos parecem ter interesse de lembrar que ele já foi ministro, do Trabalho e Emprego, durante o segundo governo Lula e o primeiro ano do governo Dilma Rousseff e foi afastado por esta última ainda em 2011, por denúncias de corrupção – especificamente, a boa e velha propina sendo cobrada por assessores para desatravancar pendências de Organizações Não-Governamentais (ONGs) em convênios com a pasta.
Aliás, sobre retornos aos ministérios, espero com sinceridade que a relação de trabalho entre o presidente e sua nova ministra do Meio-Ambiente, Marina Silva, seja mais frutífera do que da primeira passagem dela pela pasta, tendo ainda que suplantar, no processo, anos e anos de uma relação de amarga adversidade entre a nova ministra e o partido do presidente em eleições anteriores. Ah, sim, me lembrei agora, tem ainda a política externa, uma vez que não sabemos se Lula pretende retomar a relação extremamente próxima que manteve com o Irã em seus primeiros mandatos, na tentativa de costurar “um novo eixo geopolítico” – e que já era insustentável naquela época, considerando as históricas e sistemáticas violações de direitos humanos que estão na base mesmo do sistema de governo de uma teocracia, qualquer que seja a fé no comando.
São todos tópicos válidos de debate, passíveis de uma discussão aprofundada e de uma cobrança justa, principalmente por parte dos próprios eleitores de Lula. Mas sabe o que não é mais um tópico a esta hora do dia cinco de janeiro do ano de graça nenhuma de senhor nenhum reconhecido por este seu colunista ateu de 2023? A facção bolsonarista derrotada. Mas claro, para que essa gente seja relegada à irrelevância de sua nova posição, será preciso que vocês, meus sete leitores, o façam, porque se dependermos da imprensa e dos contatos de redes sociais e mesmo dessa pletora de YouTubers que fez carreira como “canal de informação” lendo notícias apurada por terceiros na “grande imprensa boba e feia”, estaremos é bem ralados.
Repercussões indevidas
Talvez eu esteja mesmo seguindo as pessoas e os veículos e os canais errados, mas achei curioso o quanto muitas das minhas janelas de acesso à informação se dedicaram a me fazer saber coisas que nem eu precisaria nem acho que ainda deveríamos estar prestando atenção nesta altura dos acontecimentos. Compartilharam comigo uma porrada de análises e defesas sobre o traje escolhido por Janja, esposa do Lula, para a posse. Porque as calças e não o vestido representam isso. Porque foi tingido com fruta, porque é seda reciclada e bordada a mão com capim. Tudo muito interessante, mas a motivação para todas, repito, todas essas manifestações, eu até agora não sei direito qual é, mas aparentemente alguma socialite inútil (como se houvesse outro tipo) gaúcha (como não ser?) criticou a escolha de vestimenta da nova primeira-dama e todo mundo meio que saiu correndo para escrever textões esmiuçando os significados das peças, que, tenho certeza, são legítimos, mas estão sendo colocados num contexto de reação à provocação que é, mais do que equivocado, perigoso.
Assim também seria preciso cuidado para lidar com as provocações gratuitas e com as travessuras pueris do atualmente foragido ex-presidente da República – aliás, um parêntese (sim, eu faço muitos parênteses): até ano passado, eu me via obrigado a declinar o nome desse personagem menor da política nacional em reconhecimento ao fato inescapável de que aquela figura abaixo da crítica foi eleita para o cargo. Agora que seu período à frente do governo felizmente se encerrou, espero jamais precisar escrever o nome dele outra vez, nem mesmo em obituário. Fim do parêntese. Como eu dizia, o atualmente foragido ex-presidente andou fazendo postagens no Twitter como se ainda ocupasse o cargo, declarando, no presente, em pleno 3 de janeiro, que seu governo ANUNCIA determinada coisa. Podia ser um acidente técnico, uma anedota engraçada sobre como, apesar de ter apagado informações importantes de boa parte dos setores de governo, a equipe do derrotado nas eleições aparentemente esqueceu de desprogramar os bots que comandavam as postagens do antigo mandatário. A questão, e eis o ponto em que eu, todos nós teremos que ficar espertos, é que não é acidente, não é anedota, não é sequer incompetência, algo que o governo anterior produziu de sobra. É um projeto, e temos que nos desvencilhar dele.
O tradicionalismo internacional
Faz um par de anos, como parte de uma longa série de esforços intelectuais ao redor do mundo para entender a ascensão recente da extrema direita, foi publicado um livro muito bom chamado Guerra Pela Eternidade: o Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista, do etnólogo americano Benjamin R. Teitelbaum, resultado de um trabalho de investigação jornalística que levou 15 meses e incluiu entrevistas longas e aprofundadas com alguns dos principais ideólogos da chamada “nova revolução conservadora” internacional. Um dos insights que podem ser destacados nesse livro em particular em comparação com outras obras semelhantes que ganharam as estantes nos últimos anos, como A Morte da Verdade, de Michiko Kakutani, O Povo contra a Democracia, de Yascha Mounk, ou Como As Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, é a forma como Teitelbaum consegue encontrar o que considera o ponto comum entre as várias manifestações de extremismos nacionalistas, mesmo as aparentemente mais díspares, como a do ideólogo de Trump, Steve Bannon, e o “homem nas sombras” do governo Putin, Alexandr Dugin. Para Teitelbaum, o que mais aproxima do que diferencia esses e outros gurus da extrema direita contemporânea é que seus planos preveem não a rejeição de minorias, ou de ideologias políticas, mas a rejeição de uma visão materialista de mundo ancorada na racionalidade iluminista. Assim, o que caras como Bannon e Dugin ou o húngaro Gábor Vona ou o até o nacionalíssimo astrófilósofo Orvalho de Cavalo deploram é o próprio fundamento teórico democrático da modernidade, preferindo o resgate na corrente do tradicionalismo (não no sentido gaúcho, mas no filosófico): uma sociedade amparada em uma visão nacionalista, espiritual, hierarquizada e religiosa da vida, inspirada pelo pensamento radical esotérico de nomes como o francês René Guénon ou o italiano Julius Evola. Na prática, é uma defesa do retorno ao medievo, para os cristãos, ou aos tempos áureos dos primeiros califados do Islamismo, para os muçulmanos (sim, as mesmas posições são defendidas por gente ligadas às duas fés).
A abordagem biográfica-jornalística do livro de Teitelbaum, focado em perfis e entrevistas dos principais nomes do atual pensamento da extrema direita internacional, tem a vantagem de acompanhar as aparentes contradições entre o fundamento filosófico por trás desse movimento e suas estratégias políticas. O tradicionalismo é um movimento de rejeição à modernidade (às vezes até mesmo ao capitalismo) que não se furta em usar as ferramentas mais avançada da tecnologia do Ocidente capitalista, como a onipresença desse tipo de personagem em qualquer rede social nos últimos 10 anos deixa claro. Ao mesmo tempo, boa parte de seu programa, que alguns chamam de “guerra híbrida” e outros de “metapolítica” inclui a tentativa de dominar a consciência do público travando a batalha ideológica na esfera da cultura – uma decisão que, também num aparente paradoxo, pode ser historicamente reconstituída até a apropriação, pela escola contemporânea francesa da Nouvelle Droite, de conceitos desenvolvidos por… Antonio Gramsci.
Essa estratégia da “metapolítica” adotada pela direita contemporânea, reforça Teitelbaum, foi aprimorada com a incorporação das inovações da tecnologia de telefonia móvel e do avanço da conexão em rede. Foi assim que a direita contemporânea internacional escapou da armadilha em que caiu com sua ligação com o nazismo no século XX, um movimento tão odioso que tornou consenso a sua rejeição unânime. Seus passos, também bastante conhecidos por aqueles que estudam o fenômeno da mentalidade de seita, constituem-se de infiltração, identificação de alvos suscetíveis, isolamento desses alvos, construção de uma realidade paralela em que apenas as fontes de informação chanceladas pela seita importam.
“Para lidarem com tal impasse, as campanhas metapolíticas em geral assumem uma destas duas formas: ativistas buscam injetar suas mensagens em canais culturais já existentes ou procuram criar canais alternativos próprios para competir com os da ideologia dominante. É a diferença entre editar artigos da Wikipédia e criar uma enciclopédia on-line alternativa; entre infiltrar-se em uma subcultura jovem e começar um novo movimento seu; entre alterar o currículo da educação pública e fundar uma escola privada totalmente dedicada à sua causa. A primeira abordagem tenta cultivar solidariedade política entre a população em geral, com ênfase no alcance da mensagem. A segunda propõe-se a formar uma sociedade paralela dentro de uma dada sociedade, grande e radical o suficiente para lutar pelo poder”, é como descreve Teitelbaum (a citação é extraída da edição nacional do livro, pela Editora da Unicamp, com tradução de Cyntiha Costa. Recomendo a todos).
Estratégias de cooptação
O discurso da extrema direita se infiltra na corrente principal com declarações e comportamentos provocativos, desperta a indignação bem-intencionada, mas ingênua, dos demais, sinaliza sua existência para aqueles que concordam em segredo, mas não se sentem legitimados a expressar seus preconceitos ou mentiras políticas. E lá vai mais gente para engrossar essa comunidade pequena, mas sólida e barulhenta que se torna o centro do debate por sua capacidade de pautá-lo. Há várias discussões sobre que tipo de combate a esse tipo de processo é o mais efetivo, se devolver a estratégia na mesma moeda e mudar o foco do debate, se impedir a infiltração tentando devolver o grupo à irrelevância.
E o que isso tem a ver com a primeira metade deste texto? Bom, o fato é que foi essa a estratégia com que o hoje foragido ex-presidente cimentou sua base de apoiadores e tocou seu governo ao longo de sua ascensão política recente: criando armadilhas propiciadas pela tecnologia de rede, dominando o debate, aumentando a amplificação de seu discurso até chegar a novos elementos suscetíveis, e então isolá-los numa rede de desinformação para criar um Brasil paralelo. Uma prática que era mais difícil de ser ignorada quando havia chegado ao poder, mas que, agora, é fundamental que seja combatida com o máximo de inteligência possível.
O ex-presidente fugiu com o rabo entre as pernas em seu penúltimo dia de desgoverno, após praticamente confessar em uma “live” de improviso que só não deu o golpe que os golpistas pediam porque não teve competência política nem para articular um. Os acampamentos de celerados iludidos pedindo golpe começam a ser desmontados. Todos assistiram à posse de Lula, repleta de simbologias visuais e políticas MUITO bem pensadas e que ainda estão sendo decodificadas. O ministério novo foi completado. Houve dias de “revogaço” em sequência tanto das medidas do próprio ex-presidente foragido quanto em áreas essenciais como a defesa do Meio Ambiente. E com tudo isso, boa parte das minhas fontes de informação ainda acha relevante se surpreender com o fato de que os golpistas estão achando que a posse foi encenada por uma neta do Stanley Kubrick e que o Lula não está em nenhuma instalação oficial, ainda “ocupada” por um general filiado ao antigo regime. É hilário? É. É meio triste até o nível do delírio a que toda essa gente se entrega, e que antigamente era reservado a uns malucos meio bêbados que tu encontravas rodando à noite pela Cidade Baixa? Com certeza. Mas não é relevante. Não mais. Mas será percebido como tal enquanto ainda estivermos reagindo, compartilhando, mantendo em circulação (para ver como essa é uma questão delicada, mesmo este texto concebido como um alerta pode estar inadvertidamente contribuindo para isso, tenho consciência, mas tento manter o foco da discussão na estratégia, embora o risco ainda exista).
Reduzir o estrago
Esse, aliás, é mais um caso em que você não vai poder contar com a imprensa para fazer a seleção do que importa na sua relação com o mundo. Como as empresas de comunicação estão hoje totalmente rendidas à chantagem das métricas de engajamento e dos algoritmos, não há maneira de uma matéria tão absurda como o delírio dos perdedores não ter lugar de destaque na capa de todos os portais, porque é algo que atiça a nossa curiosidade mórbida de até onde vai a estupidez humana ou até mesmo a nossa Schadenfreude. Só que isso, repito, faz com que o fenômeno do golpismo continue em evidência como se ainda tivesse a mesma relevância de quando estava no poder. Não tem. É hora de discutir projetos. Não continuar fazendo a doideira recorrente do extremismo tupiniquim circular.
Não falo aqui, claro, de eventuais discussões sobre se o governo que saiu deveria ou não ser responsabilizado por crimes que podem render cadeia e perda de direitos políticos, ou até quando os últimos acampados devem ser removidos e como (uma vez que a meia dúzia de gatos pingados na frente dos quartéis ainda está agredindo pessoas e perseguindo a imprensa, como se viu esta semana). Essas são outras discussões que devemos travar agora que o cenário mudou. Falo em ceder à manipulação de aceitar dessa turba os termos do debate. Que o fenômeno que impulsionou o ex-presidente foragido continua e está à procura de um novo líder, todos sabemos, já com vários candidatos se prontificando para a tarefa. A questão é que, reduzidos ao seu verdadeiro tamanho e com a abrangência de suas trapalhadas controlada por um cuidado maior no compartilhamento de informações, talvez tenhamos chances de fazer o extremismo voltar a ser o que vinha sendo em todas as democracias nas últimas seis décadas: minoritário.
Exercite a indiferença. Torne o extremismo irrelevante outra vez. É a minha mensagem de bom 2023 a todos os meus sete leitores e mais alguns que aparecerem.