De título sugestivo, Sob o signo de Saturno foi o terceiro livro de ensaios de Susan Sontag, publicado originalmente em 1980. Ao longo de seus sete textos, a intelectual e crítica estadunidense abordou, no brilhantismo peculiar de seu ensaísmo, o impacto da escrita de Paul Goodman e a obra de Artaud, os pendores autorreflexivos de Walter Benjamin, a singularidade das contradições políticas na fotografia de Leni Riefenstahl, o cinema de Syberberg, a memória de Roland Barthes e, no último ensaio, a enormidade da obra de Elias Canetti.
Como um aviso na porta de entrada, a epígrafe emprestada de Fim de partida, de Samuel Beckett, já anuncia, quase profeticamente, aquela linha de sutura capaz de organizar o subtexto temático que amarra juntos os ensaios. O “Eu amo as velhas questões (com fervor). Ah! As velhas questões, as velhas respostas, não há nada como elas” saído da boca de Hamm, uma das personagens da peça beckettiana, introduz-nos assim ao recinto mágico no qual reconhecemos a repetição, embora em roupagem diversa, das questões mais fundamentais: a finitude humana diante da realidade da morte, a história como tentativa de apreensão das singularidades ao longo da passagem do tempo, a política, a linguagem, a própria escrita como inescapável exercício de si mesmo e, por fim, a arte enquanto invenção humana – estranha, inquietante, e sempre ambivalente.
Em um dos ensaios interessados pelo pensamento de Benjamin (em quem a intelectual certamente reconheceu certa irmandade), Sontag se voltou ao conhecido momento de autorreflexão melancólica do pensador alemão em seu Agesilaus Santander (1933), onde afirmou: “Eu vim ao mundo sob o signo de Saturno; a estrela de mais lenta revolução, o planeta dos desvios e demoras”. Essa retomada intertextual no ensaio, cujo título também dá nome ao livro, não é mero empréstimo daquelas muitas meditações benjaminianas sobre o sexto planeta do sistema solar, mas é sobretudo uma das possíveis chaves de interpretação dessa surpreendente coleção de ensaios. Quando Benjamin se suicida na Catalunha em 1940, em meio às tentativas de exílio nos Estados Unidos diante da nazificação continental da Europa, é como se o suicídio retroagisse sobre a sua obra inteira, fazendo com que a conhecida melancolia se transmutasse. De traço exclusivamente idiossincrático e pessoal para um motor teórico, hobby horse velado – ou não tão velado assim… – intrínseco ao seu pensamento e contribuição filosófica. Tratava-se, afinal, de um frontal desajuste desse pensamento, de uma desarmonia toda sua, diante do horror e da barbárie do nazismo, malgrado Benjamin o denunciasse constantemente. Quando escolheu, por exemplo, Saturno como uma espécie de alegoria para representar a melancolia, também enxergou nesse topós aquela imagem prototípica e secularizada de uma dialética universal entre a criação e a destruição ao longo da lenta passagem do tempo, dentro de certos ciclos de agitação e repouso. A dimensão melancólica dessa alegoria, em vez de sucumbir aos típicos pendores do queixume de um narcisismo sempre à sombra do objeto perdido, evidencia-se nele como singular capacidade de se reinventar, apresentando-se como implacável autoconsciência engendrada, infelizmente, apenas de tempos em tempos. Não é gratuita, portanto, a escolha de Sontag em reencenar essa alegoria saturnina – sedutora, cíclica, demoníaca – no título de seu próprio livro na década de 80. Pois é como se ela estivesse testemunhando nesse contexto, em certo sentido, o próprio retorno da influência cósmica e mística desse planeta quarenta anos depois da morte de Benjamin. Um novo ciclo.
Esse retorno, no entanto, não marca somente a já mencionada, embora suposta, irmandade de temperamentos entre o pensador alemão e a pensadora estadunidense, do qual a obstinada autorreflexão é, talvez, a maior prova. Mas indica também a inquietante repetição de imagens, temas, motivos, representações e impulsos presentes no bojo de uma tradição – a europeia – que juntos ostentaram e continuam ostentando ao longo do tempo as vicissitudes de uma consciência crítica sobre a cultura e a barbárie como sendo, de acordo com Benjamin em suas teses sobre a história, apenas os lados de uma mesma moeda. É, portanto, no sentido de um retorno de Saturno como metáfora de um ciclo longo e ambivalente, ao mesmo tempo tentador e destrutivo, que o ensaio sobre a obra de incide de modo paradigmático.
Ao intitulá-lo de Fascinante Fascismo, Sontag perfaz um exercício especulativo dos mais sagazes sobre a vida e a obra (fílmica e fotográfica) da artista alemã. Embora as tentativas de recredenciamento de sua biografia passassem a se dar no contexto estadunidense dos anos 80 – algumas das quais comparando-a com Agnès Varda no rol das grandes mulheres no cinema – Sontag viu nesse processo um problema que não podia deixar passar ao largo da memória coletiva. Pois Leni Riefenstahl havia estado, quarenta anos antes, intimamente vinculada ao nazismo. Como aceitar, diante disso, que tivesse sua trajetória artística e sua biografia celebradas, reconhecidas e elogiadas, como se a participação no nazismo tivesse sido apenas um infeliz episódio? Seria possível, afinal, recredenciá-la fazendo uso de edulcoradas versões do feminismo, esquecendo assim o passado diante da novidade das obras do presente? E como ficar em paz sabendo que a memória seria, nisso, alijada e a lembrança mitigada como mera nostalgia inconveniente – ou, pior! – como apreço excessivo ao passado? Como seria possível passar uma borracha sobre as atrocidades cometidas no passado e seguir vivendo segundo uma expectativa por normalidade?
O trabalho de pesquisa histórica evidenciou que Leni Riefenstahl foi uma ativa participante dos círculos mais íntimos do Partido Nazista, especialmente a partir de 1941. Como mostram as pesquisas, essa participação fora facilitada não só por seus contatos pessoais no alto comando ou por sua assiduidade em comícios nazistas, mas também, e sobretudo, pelo seu reconhecimento enquanto cineasta alemã. Isto é, não como uma mulher que fazia cinema e, ao fazê-lo, rompia estereótipos usualmente atribuídos às mulheres; mas como uma cineasta perfeitamente de acordo com as expectativas doentias de pureza de uma raça supostamente germânica – leia-se, ariana (Salked, 2011; Infield, 1976). Entre os nazistas, ser uma mulher era mero acaso, especialmente se lembrarmos dos pressupostos de fixidez de nichos sociais bem conhecidos e apregoados pelo imaginário social alemão desde o século XIX, e que determinavam às mulheres os três irônicos K’s: cozinha (Küche), igreja (Kirche) e criança (Kinder). Filmes de Riefenstahl como O triunfo da vontade (1935), O dia de liberdade (1935), Olympia (1938) são hoje considerados como típicas peças de propaganda nazista, ainda que tentativas de interpretar apenas a dimensão formal desses filmes não consigam, nem de perto, extirpá-los da temática diabólica do nazismo ou o papel que desempenharam na estetização característica da vida política. Mesmo que as interpretações permaneçam na báscula entre atenção formal e temática, o reconhecimento contextual dessas obras leva-nos mais adiante: por terem sido encomendadas oficialmente pelo Partido Nazista e terem sido exibidas em comícios e ralis, carregam, justamente por isso, a marca indelével do colaboracionismo de Riefenstahl tanto na origem, quanto no uso. Essas foram dimensões sobre as quais a cineasta teve potencial agentivo, podendo, por exemplo, desvincular-se, desligar-se, recusar-se em participar. No entanto, como se sabe, jamais o fez, permanecendo confortavelmente sustentada pelo mecenato oficial do Ministério da Propaganda do Terceiro Reich.
Outro dado importante para compreendermos o ensaio de Sontag se encontra no contexto imediato do pós-Guerra, quando se inicia o processo de desnazificação [Entnazifierung] da Alemanha e da Áustria em 1945. Com a instituição dos primeiros tribunais internacionais, Riefenstahl foi caracterizada como ré, sendo julgada e posteriormente considerada apenas como mera simpatizante nazista. Recebeu aí, portanto, sua conveniente absolvição. A decisão, mostram os documentos, esteve eminentemente fundamentada pelos testemunhos da cineasta que, utilizando de um expediente de depoimento muito específico, convenceu os juízes de que não havia participado de modo ativo em nenhum crime contra a humanidade e não havia, portanto, tomado parte na Shoah. Ao afirmar, com requintes de sustentação emocional, que havia sido perversamente “enfeitiçada” e “fascinada” pelas lideranças do Partido, pode, assim, também abrir o espaço para uma suposição sobre a possibilidade de ter sido ingenuamente motivada, sem saber, portanto, o que de fato acontecia ou se cogitava em termos ideológicos e políticos entre os nazistas de primeira ordem. O núcleo declaratório do qual dependeu sua defesa se encontrava coadunado à assunção de uma ingenuidade política de sua parte que, muito confortavelmente, desimplicava-a de assumir qualquer condição de agência ou mesmo de apoio em relação aos crimes perpetrados.
O pormenor filosófico por trás desse tipo de declaração só seria, até onde sei, explorado vinte anos mais tarde por Hannah Arendt, em 1960, quando fez a cobertura do julgamento de Eichmann em Israel depois de sua captura pela Mossad. Ao formular a conhecida tese sobre a banalidade do mal, Arendt entendeu estar nela pressuposto um total esvaziamento reflexivo diante da ação política; isto é, uma ausência de pensamento na, e para a, ação. Ora, na medida em que se assume, por exemplo, uma postura de indiferença (“eu não me importo”), de total obediência (“eu estava apenas cumprindo ordens”) ou de manipulação (“eu fui enganado / fascinado”) diante da consideração de uma cadeia de ações com implicações políticas, então essa postura desimplica quem assume tal postura de qualquer responsabilidade sobre elas, seja como iniciador de uma cadeia causal de ações, seja como continuador de uma cadeia já iniciada. Essa postura – da qual se pressupõe a estrutura filosófica da declaração – tem o poder de sugerir, ao ser enunciada, a possibilidade de magicamente subtrair o enunciador de sua condição de agência. Pois coloca-o para além do enquadramento filosófico da intencionalidade, onde não haveria deliberação prévia e, portanto, intenção de fazer x, y ou z. Ainda, no entanto, que ao redor os sinais todos estivessem explícitos: não há ação que se realize sem um reconhecimento do contexto, isto é, do nosso entorno social mais imediato. É justamente a dimensão dessa desimplicação que, para Arendt, passaria por um esvaziamento da nossa própria capacidade humana de reflexão e de pensamento. Como se, diante de uma situação que envolverá minha ação e meu fazer, eu pudesse agir maquinalmente, sem pensar, sem empregar a capacidade humana que me distingue – e, desse modo, abdicar da minha própria racionalidade e de minha inserção no próprio mundo.
Foi reconhecendo esse pormenor do argumento sobre a manipulação nazista – “eu fui enganada, fui enfeitiçada e fascinada” – que Sontag o fará reaparecer em dimensão intertextual no título de seu ensaio sobre Riefenstahl. Não sem, contudo, criticá-lo mordazmente; como se a intelectual estadunidense estivesse ironizando o fato de a cineasta ter se refugiado na conveniência de uma saída imaginária que, por um lado, conferia-lhe uma ingenuidade digna de pena e, por outro, fornecia-lhe a oportunidade de uma total evasão da sua responsabilidade. Ao recuperar o tema do fascínio nazista/fascista em seu título, é que Sontag igualmente procurou indicar que o abandono de Riefenstahl a toda e qualquer referência ao seu passado de associação nazista nos trabalhos recentes ainda poderia dizer muito sobre seu próprio modo de pensar e enxergar a arte, mesmo passados 30 anos. Malgrado Riefestahl tivesse mudado de tema a partir dos anos 60 e 70 – quando passara a fotografar o atletismo, paisagens e, sobretudo, o cotidiano de tribos do Sudão, como os nuba – ainda assim essa mudança não elidia por completo seu passado colaboracionista. Pelo contrário, encontrava nele uma origem e uma continuidade perturbadoras. Embora tenha mudado de tema como quem muda de roupa, a nova obra fotográfica de Riefenstahl, para Sontag, seguia interessada pelos mesmos impulsos autoritários e vieses estéticos da propaganda nazista. Por mais que sobre o corpo sujo se vista uma camisola limpa, ainda assim, o corpo permanecerá indelevelmente sujo. Ou, dito de outro modo: uma vez fascista, sempre fascista. É, portanto, essa ideia que Sontag procurará percorrer.
Girando ao redor de três eixos principais, o ensaio de Sontag faz, primeiro, uma análise das obras produzidas por Riefenstahl durante a Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1944; segundo, uma análise das obras, escritos e também depoimentos em entrevistas da cineasta entre 1974 e 1978; e, terceiro, faz uma análise especulativa dos elementos mais fundamentais de uma estética fascista, que são consequentemente aplicados nas obras de Riefenstahl durante a colaboração e após. Nesse sentido, é como se Sontag estivesse reconhecendo na obra artística de Riefenstahl uma espécie peculiar de fascismo recreativo, que ora se mostra contundentemente, ora fica velado quando as condições políticas não estão favoráveis. Diz Sontag:
“Geralmente, [estéticas fascistas] fluem de (e pretendem justificar) uma preocupação com situações de controle, comportamento submisso, esforço extravagante e de sustentação da dor; elas suportam dois estados aparentemente opostos, egomania e servidão. As relações de dominação e escravização tomam uma forma marcadamente pomposa: a massificação de grupos de pessoas; a transformação de pessoas em coisas; a multiplicação ou replicação de coisas; e o agrupamento de pessoas/coisas ao redor de uma figura de liderança hipnótica e todo poderosa” (Sontag, Susan. Under the sign of Saturn. New York: Vintage Books, 1981, p. 91).
É precisamente a estipulação desse conjunto de elementos – que, para Sontag, são característicos das estéticas fascistas – aquilo que permite seguir especulando sobre os processos de captura e transformação sensível da própria vida política. E, nesse sentido, Sontag retoma, novamente, o pensamento de Walter Benjamin naquilo que ele havia desenvolvido ao final de seu famoso ensaio sobre a reprodutibilidade e a dissolução da aura da obra de arte. Pois, no epílogo, o pensador alemão lança mão da ideia de uma estetização da política, ou seja, os modos de transformação e de estruturação dos meios de produção do sensível (rádio, propaganda, cinema, televisão, fotografia e, também, a arte) que passam a ser capturados pelo Estado autoritário com o objetivo de desempenhar, dentro do desígnio totalitário, uma função de controle ideológico. Contudo, a sugestão de Benjamin vai além. Na medida em que o Estado autoritário captura os modos de produção do sensível, ele também abre a oportunidade para uma religião-da-política, marcada pelas suas peculiares liturgias e rituais, nas quais as massas poderão se expressar. Esse jogo expressivo que se funda no bojo do regime totalitário, para Benjamin, como que desvia os caminhos efetivos de uma transformação efetiva da sociedade orientada, sobretudo, por uma revisão do regime de propriedade e do controle dos meios de produção econômicos. Cumpre considerar, dentro disso, que o Estado autoritário não só sequestra e faz seus os meios de produção de arte, de visualidade e de expressividade, mas também os utiliza como parte integrante de um projeto mais elaborado de mascaramento contínuo das reais condições sociais. Não é de se surpreender que, por exemplo, Sontag fale em termos de uma “hipnose” ou, ainda, de um “controle extravagante”. Ela está, nesse sentido, dando sequência, quarenta anos depois, às especulações iniciadas por Benjamin, perfazendo assim um certo retorno ao tema das relações nem sempre amigáveis entre a estética, a arte e a política. Sontag vê, portanto, na tentativa de recredenciamento artístico de Riefenstahl uma ignomínia intolerável, assentada pela complacência com aqueles desvios (éticos, estéticos, afetivos) que, passados trinta anos, continuam animando, no subtexto da criatividade e da admiração poética, as novas fotografias da cineasta.