Volto a uma reflexão sobre o trabalho a partir da perspectiva humanista. As observações têm origem na minha trajetória profissional, incluindo um cargo de chefia na TVE/RS, leituras, alguns estudos que acompanhei e a recente paralisação de funcionários do supermercado Zaffari de Porto Alegre. O que me impulsiona é o fazer cotidiano tão necessário e os tantos abusos já constatados que os trabalhadores sofrem, mas ainda persistem.
O ponto principal é evitar a coisificação do ser humano. Não há, em qualquer atividade, uma simples execução de algo, por mais mecânica que seja. No fazer, mesmo o repetido e mecânico, sempre há a convocação de um ser único, motivado ou não. Há subjetividade. Há singularidade. É impossível pensar o exercício profissional sem levar em conta o indivíduo e o meio em que vive. Suas atividades, suas escolhas, sua família, sua história, suas contradições, medos e dramas. São as pessoas que fazem a diferença. E os pontos de fuga para preservar a essência são inevitáveis. Ser determinado unicamente por normas, por imposições de um meio exterior, sem ser ouvido, pode ser nocivo à saúde e interferir na autoestima.
Sempre me interessei por esta possibilidade, que aprendi com a linguista Marlene Teixeira, minha irmã, e as pesquisas e estudos que ela fazia sobre linguagem e trabalho, a partir da Ergologia, disciplina desenvolvida pelos franceses Yves Schwartz, filósofo, e Pierre Trinquet, sociólogo, com quem ela estudou. Ambos analisam a atividade de trabalho com o foco no humano.
Humanidade que faltou em muitas situações que foram denunciadas e que segue faltando. Além de jornadas abusivas sem descanso, sede e fome, os trabalhadores tinham que providenciar instrumentos para a função, como aconteceu na colheita da uva em vinícolas de Bento Gonçalves. Lá, o trabalho era realizado por pessoas trazidas da Bahia, que eram tratadas como escravas. Já nas plantações de arroz em Uruguaiana, o trabalho era feito por gaúchos, incluindo menores de idade, que mexiam com agrotóxicos sem as mínimas condições. Apesar das denúncias, das investigações e das multas, foi e é estarrecedor constatar que isso ainda acontece. E mais, que a tragédia envolvendo os trabalhadores baianos tenha sido ironizada por um vereador caxiense que declarou: “Não contratem mais aquela gente lá de cima, que a única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor, deixem de lado aquele povo acostumado com carnaval e festa”.
Se o tal vereador tivesse tocado um tambor e pulado atrás de um trio elétrico no carnaval um dia que fosse, talvez tivesse entendido a riqueza da diversidade e da alegria que constitui o povo brasileiro e não fosse este cidadão tão raivoso.
Fico me perguntando a razão do ódio destilado por ele! E concluo que o poder nas mãos de pessoas assim, que repudiam nossas origens – heranças culturais, a arte, as festas populares – e acham que quem se diverte não trabalha, é destruidor. É bom ratificar que o trabalho não impede a diversão e que divertir pode ser um trabalho.
E mais: Para encarar tanto preconceito, só mesmo balançando o chão da praça atrás dos trios elétricos!
Mesmo que as ações humanas sejam pautadas pela regularidade, essenciais para a vida pessoal e para a organização profissional, elas não eliminam a necessidade de cada um produzir o saber e dividir com os outros. O sujeito, ao agir, mobiliza escolhas particulares e promove negociações entre o instituído e o inesperado. As normas são conquistas da sociedade, mas se olhadas como definitivas, correm o risco de desconsiderar a vida que surge a todo instante. As determinações que chegam unicamente por imposição do meio exterior podem afetar a saúde e a autoestima dos indivíduos.
A saúde de um trabalhador começa com a tentativa de redesenhar parcialmente o meio em que vive, em função de normas próprias, elaboradas pela sua história, que ninguém pode negar ou tirar. É uma variável complexa que precisa de entendimento de ambos os lados. Por isso, a necessidade de um olhar amplo e pluridisciplinar, capaz de ver o trabalho e o humano de forma indissociável. Um depende do outro. Há que se considerar a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real, o saber investido por cada um em uma atividade e o bem-estar dos indivíduos no desenvolvimento de suas tarefas.
O trabalho é um direito de todos. E todos precisam de oportunidade e respeito.
Releitura de um texto escrito em março de 2023.
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Foto da Capa: Fernando Frazão / Agência Brasil