Vou fazer uma rápida reflexão sobre o trabalho a partir da perspectiva humanista. As observações têm origem na minha trajetória profissional, incluindo o cargo de chefia que exerci em um período da vida na TV Educativa, a TVE/RS, e alguns estudos que acompanhei. Mas o que me impulsiona mesmo é o momento que vivemos no Rio Grande do Sul, considerando os trabalhadores e a complexidade do fazer cotidiano, especialmente a partir do que aconteceu em Bento Gonçalves, na colheita da uva, e em Uruguaiana nas plantações de arroz.
É preciso evitar a coisificação do ser humano. Não há, em qualquer atividade, uma simples execução de algo, por mais mecânica que seja. O fazer, repetida e mecanicamente, não é a definição do que dá certo. Há sempre a convocação de um ser único, motivado ou não. Há subjetividade. Há singularidade. É impossível pensar o exercício profissional sem levar em conta o indivíduo e o meio em que vive. Suas atividades, suas escolhas, sua família, sua história, seus dramas. São as pessoas que fazem a diferença. Sempre teremos pontos de fuga para preservar a nossa essência. Ser determinado unicamente pelas normas, pelas imposições de um meio exterior, não é viver. É, ao contrário, algo patológico, nocivo à saúde, que interfere na autoestima.
Sempre me encantou esta possibilidade, que aprendi com a linguista Marlene Teixeira, minha irmã, e as pesquisas e estudos que ela fazia sobre linguagem e trabalho, a partir da Ergologia, disciplina desenvolvida pelos franceses Yves Schwartz, filósofo, e Pierre Trinquet, sociólogo. Ambos analisam a atividade de trabalho com o foco no humano.
Humanidade que faltou na Serra Gaúcha e na fronteira oeste com a Argentina. Além de jornadas abusivas, sede e fome, os trabalhadores tinham que providenciar instrumentos para a função. Na colheita da uva, em vinícolas de Bento Gonçalves, o trabalho era realizado por pessoas que viviam praticamente como escravas e eram trazidas da Bahia por uma empresa terceirizada. Nas plantações de arroz em Uruguaiana, o trabalho era feito por pessoas do RS, que mexiam com agrotóxicos sem as mínimas condições, inclusive menores de idade. Tudo está sendo investigado, mas é estarrecedor que isso esteja acontecendo em pleno século 21. A tragédia que envolveu os trabalhadores baianos chegou a ser ironizada por um vereador caxiense que declarou: “Não contratem mais aquela gente lá de cima, que a única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor, deixem de lado aquele povo acostumado com carnaval e festa”.
Ah, se ele tivesse tocado um tambor e se entregue ao carnaval baiano, um dia que fosse!
Fico me perguntando qual a razão do ódio destilado por este vereador! O poder nas mãos de pessoas que repudiam festas populares e acham que quem se diverte não trabalha, é destruidor. É bom ratificar que o trabalho não impede a diversão e que divertir pode ser um trabalho. E mais: para encarar tanto preconceito só mesmo balançando o chão da praça atrás dos trios elétricos!
Mesmo que as ações humanas sejam pautadas pela regularidade, essenciais para a vida pessoal e para a organização profissional, elas não eliminam a necessidade de cada um produzir o saber. O sujeito, ao agir, mobiliza escolhas particulares e promove negociações entre o instituído e o inesperado. As normas são conquistas da sociedade, mas se olhadas como definitivas correm o risco de desconsiderar a vida que surge a todo instante. As determinações que chegam unicamente por imposição do meio exterior podem afetar a autoestima dos indivíduos e são nocivas à saúde.
A saúde do trabalhador começa com a tentativa de redesenhar parcialmente o meio em que vive, em função de normas próprias, elaboradas pela sua história, que ninguém pode negar ou tirar. É uma variável complexa que precisa de entendimento de ambos os lados, especialmente nas análises de doenças físicas e emocionais e acidentes de trabalho. Por isso, a necessidade de um olhar amplo e pluridisciplinar, capaz de ver o trabalho e a atitude humana de forma indissociável. Um depende do outro. Há que se considerar a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real, o saber investido por cada um na atividade, a criatividade e o bem-estar dos indivíduos no desenvolvimento de suas tarefas.