“Alguém consegue trabalhar? Se concentrar? Fazer qualquer coisa além de “rolar” (as notícias e posts nas redes sociais)?” Esse tweet me representa, como dizem na Internet. Desde ontem de manhã, quando o Hamas invadiu Israel e começou um banho de sangue, foram poucos os momentos em que me afastei do telefone.
Esclareço logo meu lugar de fala: sou judeu, já morei em Israel, falo hebraico e tenho família e amigos lá. Já estudei e já plantei árvores lá. Tenho tios e sobrinhos, primos e algumas das pessoas que mais amo e me importo no mundo estão lá. De Norte a Sul daquele País minúsculo. Então, o que para você é um lugar distante, para mim é o lar de pessoas próximas.
Essa coluna é sobre o que está acontecendo em Israel e na Palestina, porque é difícil eu pensar em outra coisa e porque muitas pessoas me perguntam em privado sobre as diversas questões de um conflito secular inclusive a mais prosaica de todas: teus parentes estão bem?
E essa foi a primeira resposta que eu quis ter, se todos estavam bem. Mais que cálculos geopolíticos e vomitar alguma opinião nas redes sociais, eu queria acalmar minha mãe. Então, começamos uma chamada de vídeo para a irmã dela.
Ligamos para a caçula, a Jussara, lá chamada de “Sari”. Esse nome indígena é quase impossível de ser dito por um israelense raiz. Minha tia me deu uma aula de resiliência israelense com um toque brasileiro. Disse ela que a sirene estava tocando há horas, mostrou os vizinhos e completou: deu uma folga nas sirenes e eu fiz um feijão. Eu ia perguntar como estava o feijão mas a etiqueta me lembrou que não se deve questionar o feijão de alguém no meio de uma guerra. Já hoje, ela me convidou para visitá-la e exigiu que eu levasse toda família junto, “mas não agora”.
Minha tia está “longe” do epicentro do conflito, Rehovot, a cidade onde mora, está a cerca de 50 quilômetros da faixa de Gaza, que é um território de 365 quilômetros quadrados com aproximadamente 2 milhões de pessoas, um dos locais mais densamente povoados do mundo. Essa faixa estreita foi governada pelo Egito até a Guerra dos Seis Dias em 1967, quando foi conquistada por Israel, que somente se retirou de lá em 2005, mas mantém controle sobre o território chamado pelos palestinos de “maior prisão a céu aberto do mundo”.
Em 2007, o Hamas conquistou o poder, primeiro em eleições e depois em confrontos com a Al Fatah, o maior partido palestino, com mais de cem mortes e centenas de feridos. O Hamas é uma organização fundamentalista islâmica que jura destruir Israel e é uma mistura de partido político, organização religiosa e de caridade, sendo considerado como uma organização terrorista por diversos países. Desde esse ano, Israel e Egito estabeleceram um bloqueio sobre a região. A cada par de anos, uma nova rodada com mísseis jogados de um lado e bombardeios de outro, com milhares de mortes, atingindo muitos civis e causando a destruição da infraestrutura local.
No último sábado, tivemos mais um capítulo dessa luta. Em uma ação sem precedentes, o Hamas fez um ataque surpresa com cerca de mil homens em território israelense, nas pequenas cidades e kibutzim perto da Faixa de Gaza, enquanto lançava milhares de foguetes sobre as cidades do país. Nunca houve uma invasão desse tamanho nem com tantas mortes em Israel, em torno de 800, sendo a esmagadora maioria de civis. Somente em uma rave que estava sendo realizada no deserto foram 260 mortos.
O ataque foi transmitido ao vivo em lives dos terroristas que atiravam em qualquer pessoa que passasse por perto. Nem árabes foram poupados, contam-se às dezenas entre as vítimas. Em cidades pequenas, cercavam cada casa, ameaçando incendiar as casas de quem não saísse. Quem saía, era imediatamente assassinado ou sequestrado, sendo levado para Gaza. Fontes palestinas falam em 130 reféns até o momento, grande parte formada por idosos, mulheres e crianças.
Existem muitas perguntas que estão sendo feitas nesse momento, para tentar entender o que aconteceu por lá e o que deve acontecer daqui para a frente. Deixando claro que estou buscando compreender o que aconteceu e não justificar.
Segundo fontes palestinas, o Hamas vem preparando esse ataque há dois anos. Mas o momento que acontece traz muitas dicas do que buscavam com essa ação. Para isso, é preciso observar a política israelense, a política palestina e o cenário regional.
Israel
A primeira pergunta que os israelenses fazem é: como isso pode acontecer? Como os serviços de inteligência e segurança puderam errar tanto assim?
A inteligência falhou em não prever ou detectar o ataque. Como falou Pedro Doria, quem dá as prioridades da inteligência é o governo e Benjamin Netanyahu, o primeiro ministro de Israel, estava com as prioridades erradas.
O atual governo de Israel tem uma maioria de 64 deputados entre 120, conquistada após sucessivas eleições empatadas e governos relâmpagos. Diga-se de passagem que essa maioria folgada foi possível graças ao desfazimento de duas coligações antibibistas: os partidos de esquerda e de centro-esquerda assim como os partidos árabes concorreram separadamente e os partidos menores não conseguiram assento no Parlamento.
Para conseguir essa maioria, Bibi (como é chamado o primeiro-ministro) trouxe para o centro da coligação dois ministros que viviam nas margens da política israelense: Ben Gvir e Smootrich, com seus partidários radicais, racistas, violentos e falastrões. Provocações contra os árabes e declarações bombásticas viraram rotina.
Bibi, um político tradicional de direita, foi migrando para a extrema direita até chegar a essa coalizão que é considerada a mais extremista de Israel. O alvo desse governo, desde o início, tem sido desmontar o controle do Judiciário como já falei aqui na SLER. As medidas protestos levaram multidões de israelenses inconformados por 40 semanas às ruas do País.
Já seus parceiros têm se preocupado em canalizar o dinheiro público para as suas instituições, isentar os ultraortodoxos do serviço militar e aumentar a presença judaica na Cisjordânia, território ocupado por Israel desde a Guerra dos Seis Dias e parcialmente devolvido para o estabelecimento da Autoridade Palestina nos anos 90.
Além disso, eles tem se dedicado a infernizar a vida dos palestinos da região, muitas vezes com ataques violentos a aldeias e povoados árabes. Como essa tem sido a prioridade do governo, boa parte das tropas também foi deslocada para lá. Resultado: o sul do país, onde está a fronteira com Gaza, ficou desguarnecido, permitindo a entrada fácil dos terroristas do Hamas e dificultando o combate a eles. Acredito que sequer eles achavam que teriam tanto tempo para agir livremente.
Governos de extrema direita são exímios lutadores contra inimigos imaginários: a ditadura do Judiciário, os complôs de ONGS e imprensa e a “esquerda.” Mas, contra inimigos reais e sanguinários, se mostraram ineptas. A polarização ideológica dividiu as forças armadas israelenses e vem sendo apontada como uma das causas dos insucessos militares.
Além disso, o governo israelense apostava que o Hamas não teria interesse em iniciar um conflito que poderia destruir ainda mais Gaza e confiava nos instrumentos econômicos que oxigenavam a economia do enclave como a permissão para que mais de 1500 trabalhadores de lá pudessem entrar em Israel todos os dias.
O governo está sendo acusado de incompetência e de ter abandonado os cidadãos (Bibi levou horas para aparecer na TV e falar algo). Seu governo de arrivistas é visto cada vez como fraco e incapaz de lidar com a situação apesar das autopropaladas qualidade de seu líder.
Palestina
Os palestinos estão divididos em dois territórios: a Cisjordânia, entremeada por assentamentos e controles israelenses que atormentam o cotidiano de seus habitantes e a Faixa de Gaza. São dominadas por Al Fatah e Hamas que rivalizam pela liderança e já chegaram ao confronto armado aberto.
Como disse Jamil Chade: “Ao disparar mísseis, o Hamas tenta enterrar definitivamente o Fatah, se apresenta para uma nova geração de palestinos inconformados como seus verdadeiros representantes.”
A ação do Hamas tem como um dos principais objetivo mostrar que Israel não tem o poder de dissuasão militar. Quer mostrar a fraqueza de Israel e, para isso, são vitais as transmissões online de seus atos que mostram os israelenses em situação de fragilidade. Mulheres despidas, linchamentos públicos, tortura fazem parte dessa operação que fala a linguagem digital. Isso pode trazer repulsa ao público ocidental, mas faz sucesso nas redes sociais. Essa é a mesma estratégia do Estado Islâmico, por exemplo, e a extrema violência é da essência do terrorismo: inspirar terror nos seus inimigos.
Muitos líderes do Hamas passaram por prisões israelenses e foram libertados em acordos de trocas de prisioneiros. A questão dos presos palestinos em Israel é um ponto sensível no diálogo entre os dois lados. Mais de 5000 palestinos estão encarcerados em Israel, desde assassinos condenados a sucessivas penas de prisão perpétua e jovens em detenções administrativas ou preventivas cuja legalidade é questionada.
A maioria dos estimados 130 reféns sequestrados pelo grupo, com muitas mulheres, idosos e crianças entre eles, poderá ser usada como moeda de troca para libertar prisioneiros.
Muitos falam em negociações de paz, o que é importante. O processo de paz está paralisado há anos e se tornou estéril e sem benefícios para as partes. Mas, sejamos honestos: o Hamas sempre foi contra qualquer acordo de paz. Nos anos 90, usou seus homens bomba para acabar com qualquer possibilidade de entendimento. E Bibi usou disso para alcançar o poder, dizia que era o único capaz de trazer segurança aos israelenses, o que caiu por terra nessa semana.
Por fim, a data do ataque é simbólica: no último 6 de outubro foi o 50º aniversário da Guerra de Iom Kipur, data mais sagrada do judaísmo, quando os exércitos sírio e egípcio fizeram um ataque surpresa a Israel. Apesar de Israel ter vencido o conflito militar, o elevado número de baixas e a falha em prever o ataque o transformaram em um trauma nacional. Mesma razão pela qual os países árabes a consideram uma vitória.
Cenário Regional
O Oriente Médio está em constante transformação. Alianças eternas se desfazem e pactos improváveis são firmados. No balanço de poder atual, temos alguns conflitos regionais e internacionais. Israel e Arábia Saudita são as potências regionais aliadas aos EUA e o Irã tem o suporte de Rússia e China. Enquanto isso, o Qatar se apresenta como alternativa independente desses blocos e é o representante diplomático do Hamas, que não possui relações com os países ocidentais ou Israel.
Boa parte dos conflitos atuais no Oriente Médio são conflitos entre grupos apoiados pela Arábia Saudita e Irã, como no Iêmen. O Irã patrocina ainda o Hezbollah (libanês), apoia o governo sírio de Assad e também jura destruir Israel. Usa o Hamas, a Jihad Islâmica e a milícia libanesa para uma guerra por procuração permanente contra o estado judeu. Já chegou à América do Sul com dois atentados mortíferos contra a embaixada israelense e a comunidade judaica em Buenos Aires.
Nos últimos anos, a diplomacia israelense vem obtendo sucesso em estabelecer relações diplomáticas com países árabes, como os Emirados Árabes Unidos e o Marrocos, os chamados acordos de Abrahão. Esses acordos de paz não tratam os direitos dos palestinos que se sentem traídos pelas lideranças árabes e que suas aspirações serão deixadas de lado.
Nesse ano, vem sendo dados sinais de avanço e que israelenses e sauditas estariam próximos de um acordo, o que é chamado na região como “normalização” de Israel. O massacre dessa semana buscava também torpedear essa aproximação.
Uma das grandes perguntas que se faz é qual o grau de envolvimento do Irã nessa ofensiva.
E agora?
O futuro, provavelmente, reserva muita dor e sangue de pessoas inocentes. O Hamas chamou Israel para a guerra. Nenhum país do mundo deixaria de responder uma agressão desse tamanho e dessa tamanha violência. O grupo palestino sabe que não pode destruir Israel no campo de batalha. Porém, teme-se que o conflito ganhe escala como uma bola de neve, trazendo Hezbollah, os palestinos na Cisjordânia e desestabilizando os países que se opõem ao Irã como a Jordânia e Egito.
Há algum tempo, minha prima Shira me mandou de Israel um livro sobre o conflito. Na dedicatória, ela dizia que a obra tratava de um conflito com muitas camadas, mas que a verdadeira tragédia desse conflito era a nossa inabilidade de ouvir e falar uns com os outros. Com o barulho de bombas, o choro das vítimas e de suas famílias, não se pode falar um com o outro. E isso é uma tragédia.