Nem todo o fim é triste. Às vezes, o encerramento de um ciclo significa o começo de outro, muito melhor. Eu lembro bem o quão desorientada e ultrajada eu me sentia quando o trabalho do consórcio de imprensa para dados de Covid-19 foi anunciado. Era junho de 2020 e o país estava imerso no pânico provocado pela pandemia, carente de informação confiável e política pública eficiente. O sentimento era de estar imersa no caos.
O Brasil não foi exceção. O primeiro ano de pandemia Covid-19 foi dilacerante no mundo todo. Mesmo os países mais desenvolvidos e mais ricos estavam trabalhando na incerteza para guiar a população. No Brasil, porém, o houve a adoção da política do escárnio. Os dados galopantes da doença altamente transmissível e das mortes sofreram um desdém do governo federal, com reações por parte dos governadores dos Estados, o que provocou mais desencontros do que acertos.
Em vez de unificar o país para combater a doença e diminuir as mortes, a estratégia do governo foi enfrentar a cobertura de imprensa. Quanto mais atuante o jornalismo, mais debochado o então chefe de Estado, Jair Bolsonaro. As críticas ao que era publicado, as ofensas e desrespeito aos jornalistas no “cercadinho no Alvorada”, a opacidade em relação às medidas de governo foram somadas ao enfrentamento direto contra veículos de imprensa.
O período de tensão inicial, entre abril e junho, teve o painel de dados de saúde do Ministério da Saúde despublicado, teve dados desatualizados e teve uma decisão deliberada de atrasar a divulgação do balanço de informações sobre a pandemia no Brasil ao final do dia. Foi neste contexto que Bolsonaro chegou a dizer “Acabou matéria no Jornal Nacional” sugerindo que, se o governo não divulgasse os dados de Covid, o telejornal não teria o que veicular.
E foi assim que a imprensa se uniu. Veículos concorrentes decidiram criar uma força-tarefa conjunta – Portal G1, Estadão, O Globo, Folha de S. Paulo, UOL – e estabelecer uma rotina de apuração de dados de Covid-19 junto aos governos estaduais para não depender mais do governo federal, que antes centralizava as informações dos federados. O trabalho articulado foi chamado de Consórcio de Imprensa para Dados de Covid-19.
Os jornalistas das redações se uniram em grupos de mensagens e em drives conjuntos para armazenar documentos e planilhas com informações. Foram 965 dias ininterruptos e mais de 100 profissionais envolvidos na atualização diária, incluindo final de semana e feriado. As ferramentas digitais compartilhadas foram aliadas da operação, mas o que motivava as equipes era cumprir a função social de informar a população quando ela mais precisava de orientação. Neste período, as notícias produzidas com dados do consórcio ajudavam nas tomadas de decisão cotidianas, como sair ou não de casa, encontrar ou não os familiares e ir ou não ao trabalho presencial. Questões banais em condições normais de temperatura e pressão se tornaram caso de vida ou morte.
Os veículos de imprensa foram o braço amigo, a mão que estava ali estendida com uma informação precisa – números apurados com metodologia transparente – na qual a população poderia confiar. Quando o governo federal voltou a cumprir o seu papel no levantamento e divulgação de dados de saúde, a confiança estava quebrada, por isso os veículos não alteraram as rotinas de apuração e divulgação. Caso houvesse uma nova quebra no fornecimento de informações, a série histórica estaria ameaçada de incorreção.
O fim foi anunciado em 30 de janeiro de 2023 em um claro hasteamento de bandeira branca ao governo Lula, que durante a campanha defendeu o acesso à informação como prioridade, visando a promessa de manutenção dos direitos democráticos. O acesso à informação pública não é uma prerrogativa discricionária dos governantes, não é uma escolha, é uma obrigação porque é um direito fundamental constitucional. O feliz fim do consórcio de imprensa é o esperançoso começo de um período mais democrático no Brasil. Assim como os governos confiam na imprensa desconfiando, a imprensa também volta a confiar no governo desconfiando. A relação do jornalismo com o poder público é negocial, faz movimentos de aproximação e afastamento, assim funciona em regimes democráticos. O fim do consórcio significa a retomada do tríplice R entre imprensa e governo: respeito, resposta e responsabilidade.