Houve um fato marcante e negativo nesta Páscoa. Teve a ver, é claro, com os ovos, símbolo magno dela, mas não foi o preço nas alturas. Do preço já sabíamos há muitas compras, o coelho também alçado a números inalcançáveis, muito acima do IPCA do mês, ou até do ano. Teve a ver foi mesmo com a tecnologia, essa que se mete em tudo, para o bem e para o mal.
No caso, infelizmente, para o mal. Enfim, já não se abrem ovos como antigamente. Danem-se as mãos, a espera, a psicomotricidade. Danem-se o treinamento do cérebro e do coração. Dane-se a disciplina das habilidades motoras. Ovos de chocolate vêm agora com um kerri code acoplado, e o seu devido código para abrir rapidamente. A coisa virou um negócio tão somente de pontas de dedo. De telas achocolatadas. De clique. É instantânea. Que a criança acione o código ou, em casos raros de incapacidade para tal, seus pais ou responsáveis acionam. É coisa parcial e eletrônica.
Já não tem sequer brinquedo dentro do ovo, a alma do lúdico é teclar. Ou seja, não há alma. Vale o processo tecnológico de abrir. Achei isso o fim dos tempos. Tentei falar com o Coelhinho para alertá-lo da gravidade dos fatos, dizer para ele que criança precisa brincar – não teclar -, que criança precisa desenvolver ludicamente as suas habilidades – não teclar -, que criança precisa de processos que contem com os olhos, as mãos inteiras, o outro, o tempo, a espera, a realidade para lidar com as suas ilusões e aceder à subjetividade de uma alma taluda a ponto de sustentar o corpo.
O coelho me ignorou. Contratado por uma startup, alegou que entrar nesse debate criaria um conflito de interesses e, por tudo o que representava, precisava manter a ética. Não me restou alternativa senão falar diretamente com o Papai Noel. Diretamente? Só online, respondeu-me a sua assessora via Inteligência Artificial, e eu compreendi a orientação, já que ainda faltam oito meses para dezembro chegar.
Só fiquei perplexo quando soube, através do mesmo sistema, que 2024 foi o último ano de encontro presencial com o Papai. A partir de agora, tudo será virtual. Desesperado, fui atrás da Fada do Dente, último baluarte de algum tempo maravilhado. Eu estava certo de que as fadas, por uma questão de personalidade, jamais decepcionariam um adulto que ainda acredita na importância da magia.
Qual o quê! Fui submetido a muita espera em um labirinto de ramais, sujeito a golpes cada vez mais frequentes de pseudofadas. Quanto à verdadeira, irrompeu uma hora depois, declarando com uma voz irritantemente humana, de forma taxativa e inconteste: para qualquer contato mais longo com a Fada, eu precisava antes fazer um pix e enviar o comprovante.
Não sei a quantas anda o fim do mundo, mas a infância parece que acabou.
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