Minha infância foi muito rica. De cultura, de leituras em casa, de escapadelas ao cinema, vez por outra alguma ida ao teatro. Tive uma mãe zelosa, que sabia que a educação era nosso maior passaporte para o mundo. Talvez o único. Porém, com todo o cuidado e conhecimento que ela tinha, não havia muita informação ou fontes que reverenciassem ou pelo menos citassem a cultura de nossos ancestrais. Herói negro nos livros infantis de outrora? Saci? Tio Barnabé? Negrinho do Pastoreio? Vamos combinar, não são referências que estimulam a imaginação infantil no sentido da representatividade ou de ter um herói para chamar de seu.
Hoje, há uma produção muito maior, que nos conduz à formação de um imaginário afirmativo e informativo para nossas crianças com referência às nossas origens e à nossa história, que passa por culturas não europeias, não embranquecidas.
Há poucos dias, a Prefeitura de Porto Alegre concedeu o Prêmio Açorianos de Literatura a uma dessas preciosidades. O livro O fio da memória, que marca a estreia de Fabiana Sasi na arte da escrita, ganhou o título de melhor publicação infantil de 2022.
Um trabalho urdido durante a pandemia, que, entre tantas desgraças, nos trouxe um bem: tempo! Nós, felizardos sobreviventes, que tínhamos um teto, comida, alguma fonte de renda e saúde, ganhamos tempo. Enquanto muitos sucumbiam ao tédio, desânimo, ansiedade e depressão, houve quem se redescobrisse em atividades não priorizadas justamente por falta dele: o tempo. Alguns se atiraram em maratonas de filmes e séries, outros recuperaram suas leituras. Brotaram talentos inimagináveis para fazer pães, bolos, pratos comuns e mirabolantes, crochê, tricô, jardinagem, pinturas e artesanato em geral. E surgiram os escritores.
Com talento latente já delineado por sua formação na área da Comunicação, a baiana Fabi Sasi, radicada há quase 20 anos em Porto Alegre, usou parte de seu tempo para produzir um dos mais belos trabalhos direcionados ao público infantil dos últimos anos. Pelo menos que eu conheça.
A ideia da Fabi foi dar mais visibilidade à tradição da cultura oral africana na transmissão de saberes e histórias. E foi assim que nasceu Lia, nossa curiosa personagem, que conduz o fio de tantas memórias.
Surpresa ao perceber os fiozinhos de cabelo branco surgindo na cabeça da tia, Lia se questiona sobre a origem do fenômeno. É com a matriarca da família, sua avó, que a menina descobre o valor de cada um dos fios brancos como fonte de sabedoria e memórias preciosas. E para muitos de nós, leitores adultos e infantes, é revelada a figura da griô.
O papel de griô é importante na transmissão da história e cultura africanas, pois muitas vezes não existem registros escritos dessas tradições. Os griôs, sejam homens ou mulheres, também são considerados conselheiros e líderes espirituais em suas comunidades, ajudando a resolver disputas e promovendo a paz e a harmonia.
Por meio da narrativa de Lia, Fabiana Sasi vai pontuando a função social do ancião na cultura africana, destacando o tempo e a memória na construção dos processos identitários de pessoas negras.
As páginas de O fio da memória são lindas. Encantam adultos e crianças. Isso porque, para além de um texto que tem como base uma linguagem muito próxima à espontaneidade presente na oralidade, Lia e suas descobertas nos trazem à mente elementos não verbais de extrema importância. Muito disso fica nas entrelinhas, no imaginário de cada um — que pode ser explorado em família, na escola ou em grupos de leitura e contação de história —, e também fica explicitado na delicada beleza das ilustrações assinadas por Sílvia do Canto.
O fio da memória está disponível em formato digital com acesso gratuito na bio do Instagram: @ofiodamemoria. Para garantir a acessibilidade da obra a pessoas com deficiência visual ou auditiva, há também um vídeo no YouTube com a contação da história, incluindo legendas e audiodescrição das ilustrações. (Link aqui)
Com a primeira edição esgotada, temos uma boa nova para quem não abre mão de um exemplar físico: O fio da memória foi contemplado com o edital Fac Publicações da SEDAC/RS e terá lançada a sua segunda edição no segundo semestre deste ano. A gente fica aqui na torcida por esta conquista e querendo mais…
Quem sabe uma versão pro cinema, hein? Bora, Fabi?
Revisão: Rodrigo Bittencourt