Como prometi no ensaio anterior, é hora de investigar as razões do declínio dos Núcleos de Base do PT. O melhor estudo que encontrei é o de Jaqueline Ferreira, intitulado “O Partido dos Trabalhadores e os Núcleos de Base”. A autora defende a tese de que os Núcleos de Base traziam em seu interior o projeto de construção da democracia socialista do partido que o jogo de forças em seu interior ao longo dos anos terminou por abandonar. Seu efeito foi a perda da ideia do partido do ideal da democracia construída pelas bases, substituída pela institucionalização política, com todos os benefícios e prejuízos dessa condição. Entretanto, para fins da construção deste ensaio, preferi reconstruir os argumentos do artigo de Oswaldo Amaral intitulado “As transformações nas formas de militância no interior do PT: maior inclusão e menor intensidade”.
A escolha deveu-se unicamente para poupar o leitor da reconstrução do argumento de Ferreira da oposição entre democracia liberal e socialista na perspectiva de Rosa de Luxemburgo, Lênin e Gramsci, porque os termos de Amaral partem de um mesmo pressuposto, o de que os Núcleos de Base eram, junto com o processo de eleições diretas, uma das principais inovações trazidas pelo PT ao sistema partidário. A opção deve-se ao fato também de que Amaral destaca que, ao longo do tempo, os Núcleos de Base evoluíram de uma instituição de alta intensidade para baixa em relação ao período de fundação, passando seu espaço a ser ocupado pelos diretórios municipais. Por que preferi este ponto de vista? Porque recupera, em meu entendimento, melhor a dimensão subjetiva do processo de engajamento dos atores nos Núcleos de Base, o que é fundamental para propor minha tese de que o universo da digitalização do mundo veio depois completar o distanciamento dos Núcleos de Bases do poder do partido.
Se não, vejamos. O argumento de Amaral começa com a previsão do próprio Lula, feita em janeiro de 1986, quando era presidente do PT, que teria dito “no dia em que o PT esquecer a nucleação como fator determinante de sua sobrevivência, ele se acaba enquanto partido político. A questão do núcleo é tão importante que, se nós não levarmos muito a sério, a gente descaracteriza a proposta do partido. Quer dizer: o PT não pode discutir política apenas de quatro em quatro anos, nas épocas de eleições. Isso, qualquer partido faz”. Essa concepção da natureza dos Núcleos revelava a preocupação do partido com a participação dos filiados, eles eram uma “proposta de funcionamento mais democrático, definida pelo estabelecimento de mecanismos de maior ligação entre as bases e o partido”. Tradicionalmente, os filiados ou participam externamente engajados em campanhas eleitorais, convencendo os eleitores e arrecadando fundos, ou internamente, no comparecimento de atividades deliberativas, ou de formação, diz Amaral, que trabalha com dados e documentos relativos aos núcleos do Estado de São Paulo, mas que entendo suas conclusões possam servir para revelar a orientação do processo geral pelos quais passaram os Núcleos de Base ao longo do tempo. A razão deste privilégio ao caso paulista é devido ao fato de que o autor não encontrou dados consistentes junto ao Diretório Nacional para todo o país como encontrou no diretório paulista.
Os Núcleos de Base
Os Núcleos de Base surgiram como objetivo estabelecido no Movimento Pró-PT que surgiu antes da fundação do partido em 1979 e que indicava que seus membros seriam aqueles que, além de apoiar a Carta de Princípios do Movimento, “se integrassem a algum núcleo e participassem regularmente de suas reuniões e atividades”. Isso foi confirmado no Ato de Lançamento do PT, em São Paulo, em 1980, quando só foram credenciados “os representantes e líderes sindicais indicados pelos Núcleos”. Quer dizer, no ato de criação do partido, os Núcleos de Base foram sua principal inovação organizacional, numa época em que o PT estava preocupado com a articulação das lideranças e seus membros.
Tanto o Primeiro Estatuto do partido como seu Regimento Interno aprovado em 1981 formalizaram os núcleos com a função de “atrair simpatizantes, integrar todos os filiados às atividades partidárias, servir de ligação entre a agremiação e os movimentos sociais, promover a educação política dos filiados e os debates em torno das principais questões em que o partido estivesse envolvido”. Era o que dava a dinâmica “basista” do partido, sua incorporação ao desenho institucional e, segundo Amaral, mostrava a influência de seus grupos de origem, em especial, os “membros das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e do Novo Sindicalismo”.
Segundo o autor, estes aspectos refletiam o esforço dos primeiros tempos em garantir a participação democrática de filiados e, no meu entendimento, um dos momentos em que o partido mais foi radical, já que, segundo o autor, era um “tipo misto de ‘seções socialistas’ e ‘células comunistas'”. Entendo que o momento em que a direção de comando do partido se inverteu, dos primeiros tempos de baixo para cima, para os últimos, de cima para baixo, foi quando perdeu a marca de nascença fundamental para a identidade de seus militantes. Não que eu tenha sido um grande militante na época de sua fundação, pois minha participação foi modesta, mas com certeza, a ausência de incentivo e espaço para manifestação me afetou significativamente, o que me levou a me tornar simpatizante, outra categoria que merece análise.
Participação por alta intensidade
Os Núcleos de Base eram um órgão fundamental do partido, fator de sua organização e seu valor é que, ao contrário da atualidade, não estavam vinculados à competição por votos, mas à agregação de interesses e mobilização das massas, a chamada “esquerda social”. Segundo Amaral, além disso, a participação incentivada era de “alta intensidade”, definida pelo autor como a que “demanda considerável esforço e tempo dos envolvidos [como] o comparecimento frequente a reuniões”, ao contrário da participação de baixa intensidade, como “doação de recursos”, o que eu completaria hoje com “participação política via internet”.
De uma certa forma, entendo também que era o espaço de elaboração do que a filósofa Agnes Heller (1929-2019) em Para Mudar a Vida (Brasiliense, 1982) chama de carecimentos radicais, “todos os carecimentos nascidos na sociedade capitalista, em consequência do desenvolvimento da sociedade civil, mas que não podem ser satisfeitos dentro dos limites dessa sociedade. Portanto, os carecimentos radicais são fatores de superação da sociedade capitalista” (Heller, p. 133). O Núcleo de Base era assim, nos termos de Heller, essencial para superar a contradição marxista entre os sujeitos revolucionários e os sujeitos dominados, quer dizer, em meu entendimento, era a arena para envolvimento de simpatizantes nas atividades de reconhecimento dos limites do sistema capitalista, lugar de conscientização necessário para a construção do sujeito revolucionário. O sujeito atual não é exatamente o oposto, incorporado ao sistema? Quer dizer, para a construção de um partido que não contava com a estrutura prévia do MDB e Arena, que apoiaram a criação do PP, PDS e PMDB, os Núcleos eram um caminho seguro não apenas para a construção da estrutura prévia partidária, mas para a consciência da sociedade da necessidade de superação do sistema capitalista. Entretanto, como veremos, era um caminho lento e, por isso, as lideranças optaram por não o seguir.
A extensão das bases
Segundo o autor, em maio de 1980, mais de 26 mil filiados estavam ligados então aos 632 Núcleos de Base espalhados pelos 23 estados do país. Só São Paulo tinha 19% desses núcleos e 23% de seus membros, produto do notável esforço de mobilização de sindicalistas e movimentos populares urbanos. Segundo Amaral, na grande São Paulo, militantes católicos ligados à Pastoral Operária chegaram a formar cerca de 50 núcleos, “reproduzindo a ideia das CEBs de organizar grupos pequenos e maximizar a participação de seus membros”. Amaral afirma que o processo de expansão se seguiu até 1982, com atividades muito ligadas ao esforço de legalização do partido, o que envolvia “a arregimentação de filiados e a organização de Comissões Provisórias Municipais (CPMs)”, tornando os núcleos “parte de uma estratégia de ação partidária que procurava viabilizar o PT do ponto de vista legal e eleitoral por meio da articulação com setores da sociedade civil organizada e de intensa participação de seus membros.”
A data é importante e as razões são apontadas por Ferreira: “O PT, em 1982, adotou posturas contraditórias em relação ao processo eleitoral. De início, afirmava que concorria para consolidar a organização partidária, já que não esperava mudanças reais para os trabalhadores através do processo eleitoral, mais tarde, especialmente em São Paulo, afirmava que concorria para ganhar. Elegeu como eixo de sua campanha a independência política de classe “Trabalhador vota em Trabalhador”, o que, segundo o autor, demonstra mais uma vez a força do “grupo do Lula” que, nesse momento, já possuía maioria absoluta na direção do partido” (Ferreira, p. 130). O fraco resultado das eleições, com 3,3% dos votos, levou a uma reavaliação interna. “As deficiências do partido estiveram encobertas durante a campanha eleitoral pelo entusiasmo dos militantes, mas com os resultados considerados fracos. A crise tomaria conta do partido: diretórios e núcleos foram desativados; a militância desanimou e muitos se afastaram; acirrou-se a luta interna entre as diferentes avaliações sobre a atuação do partido”. A cúpula buscava resultados rápidos, o que os Núcleos não podiam oferecer, e o diagnóstico e reposicionamento em relação a eles começou a ser tratado nos encontros do partido.
A constatação da crise
O primeiro diagnóstico oficial veio em 1984, no 3º Encontro Nacional do Partido, onde uma resolução apontou que “muitos núcleos estavam se transformando em entidades fantasmas, funcionando apenas para o cumprimento de exigências legais ou como mecanismos de indicação de delegados para as disputas internas”. Ele foi confirmado por Resolução aprovada dois anos depois no 5º Encontro Nacional do Partido, que afirmava que “atualmente, nossos núcleos de base são poucos e, na maioria das vezes, precários, havendo uma enorme distância entre os nossos desejos e a realidade […] Os núcleos estão abandonados. Devemos reconstruí-los como a principal base e característica do partido”.
Seguiu-se na mesma linha a Resolução aprovada em 1986 cujo diagnóstico foi confirmado em 1990 pelo 7º Encontro Nacional do Partido, que apontou que os núcleos estavam apenas tendo “ação apenas episódica, às vésperas dos encontros e convenções, transformando-se em comitês eleitorais de apoio a candidatos proporcionais ou se engalfinhando em intermináveis disputas”. A constatação de declínio e preocupação em “revitalizar os núcleos” torna-se presente nas declarações posteriores aos anos 1990, mas o fato é que foram simples menções formais, e segundo o autor, “o fato de os Núcleos de Base terem deixado de ser objeto de comentários mais longos e críticos por parte das resoluções partidárias ilustra a redução de sua importância para a organização interna petista.” A função básica dos núcleos no partido foi aos poucos reduzindo-se à de indicação de delegados e, segundo o autor, entre 1997 e 2001, a proporção de lideranças que pertenciam aos núcleos ficou entre 7 a 10%, não passando, em 2007, de 2,3%.
O que aconteceu? A redução da participação dos membros dos Núcleos de Base nos Encontros Nacionais evidencia o seu afastamento das instâncias de poder. Segundo pesquisa de 2007, “o PT cresceu e os Núcleos perderam peso político”, mas poderia o PT sobreviver sem o órgão que foi sua base política? E a que custo? Desarticulados, sem capacidade de cumprir as suas funções, entendo que não foram apenas os núcleos que perderam poder, mas também o próprio PT, que deixou de ser um partido “diferente”, para se aproximar da noção de “igual’ com que tantos partidos se identificam e que os militantes recusam. Minha conclusão é que os núcleos perdem poder real no interior do partido, enquanto o partido perde poder simbólico sem eles.
A ascensão dos diretórios municipais
A partir deste momento, Amaral produz sua explicação da decadência dos Núcleos de Base. Ele afirma que sua mobilização entre 1978 e 1984 não correspondeu a um ciclo de mobilização e protestos dos movimentos sociais que surgiram como elemento para canalizar demandas por maior participação política da sociedade civil organizada no período de transição para a democracia. “Isso nos ajuda a compreender por que, mesmo com todos os problemas estruturais para a formação dos núcleos, como a falta de recursos, estes floresceram naquele período”. O problema é que, a partir dos anos 80, houve um refluxo na mobilização social que pulverizou sua estratégia de atuação: “Os Núcleos deixaram de ser o local privilegiado de discussão e articulação política dos movimentos sociais junto ao PT e passaram a concorrer com os DMs (diretórios municipais). Essa concorrência era, por sua vez, claramente favorável aos DMs dada sua natureza institucional, que lhes garantia posição privilegiada na relação com parlamentares no plano local e instâncias partidárias superiores e na seleção de candidatos.”
Além disso, somam-se as dificuldades financeiras para sua organização nos anos 80, além da ausência de um sistema de comunicação eficiente com os DMs para manutenção de espaços de reunião. Isso reduziu sua capacidade de organizar encontros periódicos e de consolidar práticas de incentivo à participação dos militantes, perdendo em institucionalização no interior do partido. Isso não foi resolvido sequer em 1995, quando o partido passou a contar com mais recursos e um orçamento mais organizado, ao contrário, desde 1984 os Núcleos de Base eram obrigados a passar ao Diretório Municipal 60% de sua arrecadação. Quer dizer, as opções das lideranças do PT é que levaram à morte dos núcleos. A prática foi sacramentada no Estatuto de 2001, onde foram retiradas as funções de arrecadação (art. 170) e estabelecida a responsabilidade aos DMs, no artigo 175, na decisão de recursos de sustentação aos núcleos.
Você podia ser um filiado sem participar dos núcleos, sem participar de uma instância de debate político. Entendo que isso matou a identidade do partido: “Durante a campanha pela legalização do partido, o PT viu-se obrigado a abandonar a ideia de que todo filiado ao partido deveria estar ligado a algum núcleo, o que reduziu muito sua importância organizativa de base. Além disso, os núcleos nunca tiveram poder deliberativo. Tema de acalorado debate, a liderança partidária temia que os NBs fossem instrumentalizados pelos grupos organizados do partido e incentivassem as disputas internas. A limitação do escopo de atuação dos NBs e a eliminação de qualquer possibilidade deliberativa demonstravam uma mudança de posição da liderança partidária a respeito do papel dos núcleos. Se no momento de fundação do partido os NBs foram vistos como importante recurso organizativo, em meados dos anos de 1980 a percepção era de que os Núcleos significavam um risco à estratégia de ampliação da base social e capacidade de representação do partido. Os NBs foram, assim, privados de incentivos institucionais que auxiliassem em sua manutenção como importantes instrumentos de organização e a atuação dos militantes passou a se concentrar, cada vez mais, nos diretórios.”
O confronto de visões
Assim, a decisão foi resultado do confronto de duas tendências: a primeira, chamada de moderada, que preferia expandir os diretórios municipais e não os núcleos, e a segunda, a radical, que queria o empoderamento dos núcleos. Venceu o chamado Campo Majoritário, que defendia os núcleos como instância consultiva e sem deliberação importante no partido. O que “reforçou a posição coadjuvante dos núcleos na estrutura organizacional do PT. Além da subordinação financeira aos Diretórios Municipais e Zonais já descrita, os NBs ficaram sem possibilidade de enviar delegados aos Encontros Estaduais e Nacional e sem representação nos Diretórios em todos os níveis. O Estatuto de 2001 não só restringiu a participação dos NBs na vida partidária, como os direcionou para a competição eleitoral ao estabelecer, no Art. 129, que pré-candidaturas às Câmaras Municipais podem ser aceitas a partir da indicação de um Núcleo e, para as prefeituras, a partir da subscrição de 30% dos NBs existentes no município. Dessa forma, o partido ofereceu um incentivo extra para a aproximação entre candidatos a vereador e a prefeito e os NBs”, finaliza.
Os núcleos de base foram vítimas da ambição do PT em ampliar rapidamente a base social do partido em sua busca por resultados imediatos na competição eleitoral. Em vez de construir lentamente uma base sólida, preferiu rapidamente construir uma base superficial. Preferiu os filiados aos militantes, isto é, os simpatizantes àqueles que depositavam fé na filosofia do partido. Mais filiados com menor intensidade de participação. Os autores mostram a queda em São Paulo: em 1982, no auge da nucleação, havia 272 NBs e 150 DMs a uma razão de 260,8 filiados por núcleo. “Em 2013, quando a pesquisa foi feita, havia 241 NBs, 457 DMs, 165 CPMs e uma razão de 1.241,9 filiados por Núcleo. Essa simples descrição demonstra que, no início dos anos de 1980, o processo de construção partidária tinha nos NBs um importante elemento organizativo em São Paulo, mas que o aumento no número de filiados não foi acompanhado pela expansão dos Núcleos, sugerindo que a militância não tem mais essa instância partidária como um espaço privilegiado de atuação”.
Segundo o autor, os Núcleos de Base estavam concentrados na região metropolitana, espaço onde as mobilizações foram mais frequentes no fim dos anos 70. Quer dizer, saíram da grande São Paulo para o grande ABC, “sendo que as cidades de Diadema e Mauá concentram 114 NBs. Uma possível explicação para essa inversão é a de que, no início dos anos de 1980, os sindicatos da região do ABC serviam como polos de organização para o partido, o que não acontecia na capital, abrindo espaço para a formação de núcleos, especialmente na Zona Sul da cidade. Com a diminuição da mobilização sindical e a estruturação do PT, os NBs passaram a ser mais necessários do ponto de vista organizativo e mais atraentes como espaço de atuação partidária para os militantes da região do Grande ABC. ”O autor atribui o fato às administrações petistas que, entre 2005 e 2010, incentivam o surgimento de núcleos de base nesse período. A minha pergunta é: o que as administrações de Porto Alegre petistas fizeram durante dezesseis anos na capital em relação aos Núcleos de Base?
As duas ondas de desmobilização
A hipótese do autor é que as novas formas de participação no partido independem de núcleos organizados. Essa corresponderia, na minha visão, a uma primeira onda de desmobilização. A minha hipótese é que essa situação foi agudizada por uma segunda onda devida à ascensão das tecnologias digitais. Entre 2007 e 2009, os autores não viram impacto representativo dos núcleos nos níveis de filiação partidária ou participação dos filiados, o que significa que os NB também tiveram sua influência comprometida. O fato, segundo os autores, de núcleos serem mais presentes em cidades com prefeitos petistas entre 2005 e 2010, e os autores constatarem que no período isso aumentava 5,2 vezes em relação a uma cidade sem prefeito petista. “Embora inconclusivos a respeito da relação de cada um desses Núcleos com o poder no âmbito municipal, esses dados sugerem que é mais fácil encontrar um NB ativo em lugares nos quais o PT foi governo nos últimos cinco anos do que nos locais em que há um alto nível de filiação ou de participação dos militantes nas atividades partidárias.”
Após 1982, já diz Ferreira, os Núcleos de Base terminaram por se transformar na prática em comitês de apoio a determinados candidatos. Nada mais contraditório do que, no ano em que o partido lança sua plataforma defendendo a democracia pelas bases, que os núcleos tenham sido reduzidos em sua função e aparelhados. Segundo a autora, a partir das eleições de 1988, o PT afasta-se do discurso da ruptura e assume uma posição de conciliação. A consequência foi a abertura de espaço para a assunção pelo partido de iniciativas neoliberais em diversos níveis e esferas, o que deixou aberta a porteira até para a emergência da extrema direita representada pelo governo de Jair Bolsonaro. Quer dizer, os núcleos perderam o espaço de serem uma instituição de educação política: a sociedade, sem militância, sem crítica, foi conduzida pelos “ventos dos tempos”: aqueles que mais se instrumentalizavam, mais se aparelhavam, mais conquistavam consciências, começaram a vencer as eleições. Nesse período, um intenso processo de precarização torna ainda mais importante uma política pública social, para as classes dominadas, e uma política de entrega dos bens de estado para as classes dominantes.
A informação final do autor é importante para nossa conclusão. Segundo eles, se os núcleos perderam seu poder como instância de organização partidária em detrimento dos DMS, “em 2001, 52,8% dos delegados afirmaram que a principal instância de organização, participação e decisão da base partidária deveriam ser os núcleos”. Essa posição não mudou seis anos mais tarde, quando 33,5% dos delegados defendem a mesma opinião e isso significa que a grande contradição da esquerda é que ela acredita na importância dos núcleos, mas suas ações mostram que eles não são vistos como elementos orgânicos do partido. A consequência é que os núcleos não existem mais na vida política real do PT, mas apenas em seu imaginário. “Elemento essencial da identidade partidária, é a representação concreta da história de uma agremiação formada com base nas premissas de forte vinculação com os atores da sociedade civil organizada e de participação de alta intensidade dos militantes nas atividades partidárias”. Se não desempenham mais papel organizativo relevante, ainda mantêm importante papel simbólico.
Por quê? No fim dos anos de 1980 e início da década seguinte, os núcleos de base eram o símbolo de uma agremiação que defendia a alta participação de seus membros. Para os autores que li, as eleições de 1982 e o processo de decadência que se seguiu explicam a erosão dos núcleos. Defendo que a realidade dos anos 1990 foi apenas o início de seu distanciamento e perda de poder. Se os autores têm sucesso em defender a corrosão causada pelas atividades partidárias vinculadas à competição eleitoral e à ocupação dos diretórios municipais, que vieram a ocupar essa realidade, sugiro uma terceira causa de corrosão válida para atualidade: agora, sequer os diretórios municipais têm o alcance que tinham nos anos 2000 e a sua decadência deve ser atribuída ao fenômeno que está diante dos olhos de todos.
Os Núcleos de Base entre o real e o simbólico
É que entendo que a realidade do partido também foi afetada pela digitalização da sociedade. Mais, pela digitalização da política. Os núcleos de base assim teriam sofrido dois processos de corrosão: o primeiro, os da competição real; o segundo, o da competição virtual. O espaço real dos núcleos e, talvez, dos diretórios, não estaria sucumbindo ao poder do espaço virtual? Sites das redes sociais dos partidos e suas tendências proliferam em todos os âmbitos; vemos hoje que muitas ações são mediadas pelas redes sociais, assim como as formas de divulgação e comunicação estão em rede. Quarenta anos após a fundação do partido, as atividades de militância não passaram de alta, para baixa intensidade, ao contrário do que o autor propõe. Foram paulatinamente passados de alta, para média e baixa intensidade. Quer dizer, o que ele acha que é “baixa intensidade” no passado, o vínculo ao diretório, hoje seria média, já que a baixa intensidade real são as redes sociais.
Quer dizer, há dois ciclos corrosivos. O primeiro, de primeira geração, onde as transformações foram tanto endógenas quanto exógenas, como afirma o autor. Mas no ciclo corrosivo de segunda geração, as transformações foram exógenas. Isso significa que as lideranças partidárias devem fazer suas opções num contexto estratégico amplo, que inclui a sociedade em rede de que fala Manuel Castells, pois esta é a que produziu também alterações no comportamento das massas diante da política e que levou ao final a ascensão da direita; entendo que, se a esquerda quiser voltar ao poder, fazer retornar ao processo de democratização, terá de partir de um recuo estratégico: sair das redes. Isso é possível? Não sei, simplesmente porque não tentamos outras formas de vida política. É preciso abandonar o mecanismo que fundou as decisões do passado e que buscava ampliar as bases de forma superficial; é preciso agora a construção de bases de forma profunda que só o ativismo possibilita, a defesa da participação crítica na política. Voltar ao que eram seus diferenciais, as estratégias de incorporação de base pela consciência.
A oportunidade é dada pelo reconhecimento generalizado de que as fake news são um entrave à democracia, mas não apenas isso, só fomentando polarização ideológica sem conteúdo. Dessa forma, sair das redes para os núcleos seria dar voz aos filiados que pensam que têm voz nas redes quando não têm. E nos termos do autor, daríamos um passo atrás, retornaríamos aos objetivos dos anos 2000: “Dessa forma, a ampliação dos poderes dos filiados seria uma forma de captar membros, recuperar a credibilidade dos partidos entre o eleitorado, tornando seu processo decisório mais atraente e transparente, e manter uma parcela dos eleitores mais próxima do partido em uma época de clivagens ideológicas mais fluidas. Parece-nos que essa interpretação mais abrangente, não apenas vinculada aos cálculos da disputa política interna, apresenta uma importante linha interpretativa para o caso petista. “Abrir o PT” e “distensioná-lo” fizeram parte de um esforço maior de ampliar a base social petista e sua vinculação com setores mais amplos do eleitorado, ainda que com laços mais frouxos.” Não é exatamente nesse ponto em que estamos, de ampliar a base social do partido? O que se pensava no início dos anos 2000 no interior do partido não corresponde exatamente ao diagnóstico dos anos 2024? Quando, nos termos de Zizek, pensarmos de outro modo, estaremos no ponto de partida para a reconstrução da esquerda.
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Foto da Capa: PT/PR