Em 1949, mais precisamente no dia 5 de agosto, um terremoto de magnitude 6,4 atingiu a província de Tungurahua, no Equador, matando 5.050 pessoas. Aldeias foram destruídas e uma pequena vila, Libertad, desapareceu, engolida por uma fissura do solo. O tremor se estendeu até a capital, Quito, e Guayaquil.
Na pequena cidade de Guano, as paredes da antiga igreja de Assunção se romperam e revelaram o que hoje é um mistério e uma atração turística. Dentro de um cântaro – um grande jarro – repousava um frei franciscano. O que prometia ser um sono eterno quebrou-se. O achado transformou-o numa celebridade: a Múmia de Guano.
Mais do que um dano arqueológico, afinal o templo havia sido construído no século XVI, o achado vem suscitando especulações ao longo do tempo. Inicialmente, as investigações identificaram a múmia como sendo de um monge espanhol franciscano, o Frei Lázaro de La Cruz de Santofimia. Ele fora o guardião da igreja de 1565 a 1572. Muitos afirmam que, por sua bondade para com o povo, seu sepultamento, dentre as paredes, faria com que ele pudesse continuar cuidando do lugar.
Alguma justificativa muito especial teria sido a razão, visto que não foram encontrados vestígios de nenhum outro sepultado entre os escombros. A mumificação talvez nem fosse intencional, seria efeito do pó de cal, jogado sobre o cadáver, um costume para evitar o odor da putrefação.
Desde então, cientistas e curiosos debruçam-se sobre o morto. Dezenas de radiografias, endoscopias, datação por carbono e outros exames apontam que ele teria entre 85 e 90 anos quando morreu e uma altura de 1,70 a 1,75 metros. A pesquisa não para aí.
Em 2019, um novo estudo, através de análises de tecidos do corpo tão bem preservado, sugeriram que ele teria sofrido de artrite reumatoide. Uma doença inflamatória crônica que atinge articulações, ossos, cartilagens, tendões e ligamentos, e que deve ter-lhe causado dor e limitações. Atualmente, bem conhecida e com alta prevalência em todo o mundo, esse tipo de artrite pode ter se originado no continente americano, ainda antes da colonização. A condição torna a Múmia de Guano de interesse também por ser um possível elo na história dessa doença.
Em agosto de 2022, outra reviravolta. Nova pesquisa demonstra que as vestimentas do cadáver seriam do período entre 1735 e 1802. Ou seja, posterior ao falecimento do frei. Pertenceriam, provavelmente, a outro membro do clero. Conforme um teste de DNA e, segundo comunicado do Instituto Nacional do Patrimônio Cultural do Equador, trata-se de um mestiço, com “ascendência mais europeia do que indígena”.
Finalmente, – e isso premia o paciente leitor que chegou até aqui nessa crônica – há um detalhe importantíssimo nessa descoberta, desde o início. Ao lado dos restos mortais, foi encontrada outra múmia. A de um singelo ratinho. Também perfeitamente preservado. E é aí que a história se torna ainda mais surpreendente.
Havia até a pouco, nas explicações dos habitantes locais e guias do museu, onde as múmias estão expostas, duas versões sobre esse fato. Há quem apregoasse que o franciscano fora um solitário e o camundongo seu único amigo, daí terem sido enterrados juntos. Outros, mais pragmáticos, referem que – por supuesto – o rato teria entrado no recipiente sepulcral para devorar os restos mortais do religioso e acabara preso ao pretenso banquete.
Espero que o debate não se estenda ou, num termo corrente, não viralize. Com o espírito nefasto que assombra o nosso tempo, dá para antever incontestáveis certezas. Alguém reforçará a primeira versão, de que o franciscano, sendo um seguidor fiel de seu modelo, São Francisco de Assis, naturalmente era parceiro, amigo e protetor da pequena criatura. Não faltarão, no entanto, os de mente obscena; crocitarão torpes gracejos.
Fulanos o acusarão de ter sido um “vermelho”, maldito precursor do comunismo, a dividir propriedade com um pobre desamparado. – Hipocrisia – vociferará de alguma tribuna uma beltrana – é fácil repartir o túmulo depois de morto. Sicranos gritarão bordões, do tipo “faça a América grande de novo!”. Já elaboram fake news, asseguram que a genética do camundongo é compatível com a de Mickey Mouse, clara alusão ao imperialismo e ao empreendedorismo neoliberal.
Independente de credo ou ideologia, torço sinceramente para que outro franciscano, esse de legitimidade comprovada e um admirável contemporâneo, durma em paz. Com seus sapatos pretos usados e confortáveis. Fora da tumba, seguirá muita controvérsia e dificuldade de acomodação, entre ratos e homens.
Todos os textos de Fernando Neubarth estão AQUI.
Foto da Capa: Reprodução da Internet