Há um véu que me encobre a mente e feito gelo, fluido, me penetra até as entranhas. Agarro-me a Hipnos, o amigo destes meses de fuga, que mimo com valeriana, erva cidreira e aspirinas. Ele me busca, na cama larga e sólida, dentro do pacote de plumas de ganso, que divido com oito patas e dois rabos pretos enroscados. Às vezes, nos leva por 10, 12 horas – meus movimentos tão leves que nem estes gatos acusam. O silêncio absoluto, como o de um existir que se quer apagar, partido apenas por breves minutos, muito cedo, no andar de baixo, com gestos enérgicos de abrir portas e janelas na glacial cozinha. Um instante de conforto sonhado, todas as noites, lá dentro dos pesadelos em profusão. O som da mulher que cuida para que eu não mingue como a chama de uma vela no último centímetro.
Desperto a cada novo dia com as mesmas lembranças das fotos e boletins das agências de notícias nas redações. Munição farta para atingirmos o leitor: “Good news? Bad news!” Desço do quarto e, muitas vezes, mal toco a mesa do café da manhã: o pão caseiro, o queijo da colônia, o bolo de fubá bem fofo, as maçãs do pomar… Os gatos, sim, se regozijam com a ração.
Através dos séculos busco onde tropeçamos. Estivemos em pé ou nos arrastamos? Rumo ao abismo que não queremos enxergar.
As cinzas na lareira foram recolhidas, as achas de lenha novamente arranjadas em triângulo, gravetos e jornal retorcido na base – basta riscar o fósforo. Os nós de pinho nas paredes laterais para secar quando o fogo recomeça. O tapete de lã de carneiro, bem espanado, irradia aconchego e o calor da calefação. Mas o frio se esgueira pelas frestas na alma.
Imagens se acotovelam, disputando o pódio dos horrores: execução pública da vítima com pescoço envolto em um pneu cheio de gasolina e incendiado, apartheid; tórax separado das perninhas no chão, massacre dos oito mil meninos e adultos em Srebrenica; criança mutilada nos campos de refugiados, Afeganistão; mãe que soca o peito gritando pelo filho morto, explosão de carro bomba em Bagdá; reféns das Farc acorrentados em árvores, selva colombiana… Será mais um dia curto interminável. O computador aberto, a tela em branco esperando as palavras que preciso encontrar. Mas sempre esse frio de tocaia.
Matamos o tempo real onde poderíamos existir – o que um dia mediu o período de uma gestação, do plantio e da colheita, do crescer do pão e do fermentar do vinho, da transmutação da lagarta em borboleta. Agora, fingimos que não é preciso mais esperar o fruto amadurecer, quanto menos, a flor desabrochar. Arrancamos todos os brotinhos na primavera. Jogamos as sementes no gelo.
Acaricio a caneca fumegante de café forte e cheiroso, acomodada bem juntinho ao fogo dançando na lareira. Meu olhar se perde através da janela e sua cortina de fog a esmaecer o pinheiro alemão. Na cozinha já aquecida, em cima do fogão a lenha repousa a sopa de legumes – curtem os sabores da batata, cenoura, cebola, nabo, couve e espinafre da horta que brota viçosa pelas mãos de Inês.
Como ter essas mãos? Mãos que não torturam, não desprezam. Mãos que geram vida. Mãos de mãe que nunca fui. Mãos de Deus que teimo em acreditar.
Ligo a televisão e a CNN noticia a prisão do criminoso de guerra servo-bósnio Radovan Karadzic. Respiro em suspenso, as faxinas étnicas de Srebrenica e de Saravejo frescas como ontem na memória – os maiores assassinatos em massa na Europa desde a II Guerra Mundial. As lágrimas secaram em algum lugar deste passado e me entrego às labaredas queimando furiosas na lareira. Levanto, vou até o computador e escrevo: “Segunda-feira, 21 de julho de 2008. Hoje a Grande Sérvia planejada por facínoras do porte de Karadzic se esfacelou”. E as palavras fogem com a ventania do inverno no meu peito.
Mas nessa noite não tomarei as ervas e as aspirinas. E a lua não aparecerá envergonhada por trás das nuvens. O céu estará limpo e me sentarei no telhado, com os gatos no colo, para vê-la sorrir com sua cara de bolacha Maria. Amanhã sairei da toca e comungarei com a liberdade dos tucanos, gaviõezinhos, veados, macaquinhos, quatis e esquilos, que disputam tão somente a beleza das montanhas em mata virgem. Seguirei pelo caminho de pequenos campanários e imagens sacras, como uma Santiago de Compostela, até a capelinha de basalto no alto do morrinho. Preciso rezar um pedido para vencer o frio covarde e ir a campo. Preciso narrar a história das mulheres que recolhem sucata dos mísseis para usar como vaso de flores sobre a mesa de jantar – dor e resistência de quem sobrevive na certeza de que não viemos ao mundo para matar.