Não param as reflexões sobre o futuro da esquerda. Talvez não tenham chegado a uma conclusão porque depositam mais sua análise no termo “esquerda” do que no “futuro”. Na introdução do livro O futuro não é mais o que era (Sesc, 2013), Adauto Novaes lembra que o poeta Paul Valéry (1871-1935), ansioso para saber sobre o futuro, quis interrogar o diabo, mas desistiu porque, mesmo sendo o diabo, ele nada poderia dizer. Hoje, enquanto a esquerda perguntar ao Capital o que deve fazer, a nossa atualização do diabo, estaremos condenados a um futuro sem esquerda. No debate sobre o seu futuro, a esquerda já não está sendo cogitada para um deslocamento para o centro? Já o sonho da direita é que, no futuro, a esquerda seja parte do seu campo, quer dizer, alguém que já foi de relacionamento difícil, mas que depois, como todos, se transformou em alguém de fácil negociação e incapaz de oferecer um obstáculo sério às pretensões do Capital. Novaes diz que Valéry estava preocupado com o espírito do tempo, a verdadeira potência de transformação, que já a sua época era vista como modificada pelas transformações técnicas e científicas que, segundo ele, faziam-nos “perder nossos meios tradicionais de pensar e prever. Assim, o futuro é como todo o resto: não é mais o que era” (Novaes, p.11).
O fim da civilização visto por Valéry no passado é atualizado nos debates políticos atuais pelo fim da esquerda. E, da mesma forma que o poeta propõe o fim das ideias de futuro, tal como o pensamento moderno propôs, da mesma forma podemos propor que já estamos prevendo o fim da esquerda. Novaes introduz no início de seu texto uma citação tirada da obra Apocalipse, do escritor Karl Kraus (1874-1936), que serve como ponto de partida deste ensaio: “O verdadeiro fim do mundo é a destruição do espírito, o outro é condicionado pela experiência que consiste em saber se o mundo subsistirá depois da destruição do espírito”. Substitua “espírito” por “esquerda” e você terá a minha tese principal neste ensaio, a de que a destruição do mundo – leia-se, a submissão total da sociedade à lógica do capitalismo autofágico de que fala Anselm Jappe – será dada pela destruição do espírito da esquerda, do espírito voltado para a solidariedade global. Destrua o espírito da esquerda e você destrói a esperança numa sociedade melhor. Na mesma semana em que vários intelectuais refletiam sobre o futuro da esquerda, circulava nas redes sociais uma frase atribuída a Gilles Deleuze que diz “ser de esquerda é antes de tudo pensar no mundo, depois no seu país, depois nos seus entes queridos e depois em si mesmo: ser de direita é o oposto”.
Por uma esquerda que olhe para trás
Por essa razão, se o futuro é como todo o resto, não é mais o que era, o que poderia ser, o de uma sociedade melhor, é exatamente porque desapareceu o ideal de esquerda. Ela não é mais o que era no momento de sua fundação e exatamente por isso as reflexões que os filósofos fizeram sobre o tempo servem para a esquerda. Elas ensinam à esquerda que, se quiser um caminho para seguir para o futuro, é preciso olhar para trás. Primeiro porque, como diz Santo Agostinho, se “o passado não existe mais e o futuro não existe ainda”, serve a resposta dada a ele por Valéry de “o que não existe mais está no coração do que existe”. Se a esquerda tem algo a fazer para salvar seu futuro, não é a construção de um programa adequado aos “novos interesses”, aos “novos atores”, é justamente olhar para trás para ver em si mesma o espírito de sua fundação. Que mundo imaginava, para que havia sido criada? Ali estará a resposta para o que deve fazer quando o capitalismo parece estar terminando com o mundo. Por isso, Agostinho sugere voltar a lembrar o passado, dar atenção a ele, o que coloca em atenção e evidência o espírito de esquerda. É preciso colocar a inteligência de esquerda a por em mostra as evidências do seu espírito original, chave para a potência de transformação. Tudo o mais transforma o espírito de esquerda em coisa supérflua, como faz a modernidade com todas as expressões do espírito, na definição de Valéry.
As ideias de futuro, o espírito da esquerda, podem parecer coisas vagas, mas não são. Elas justamente nos oferecem os ideais de uma geração que está perdida frente à barbárie dos fatos neoliberais. Se Valéry prenunciava o início do fim da civilização ocidental com a frase “nós sabemos agora que somos mortais”, produto de uma época que é capaz com a ciência de matar e arrasar cidades inteiras, Trump prenuncia o fim de qualquer possibilidade de solidariedade global com a frase “alguém conhece Hannibal Lecter? Ele é um homem maravilhoso”, produto de um ultraneoliberalismo perverso que deseja que o futuro seja exatamente isso, “jantar as classes populares”. Hannibal Lecter não é a melhor imagem do capitalista atual, em sua fome de devoração, em sua compulsão à carne de suas vítimas? Não é exatamente isso que acontece com a carne dos trabalhadores, dos trabalhadores de aplicativos, que é devorada no processo de trabalho? Que futuro têm esses trabalhadores devorados?
O futuro da esquerda visto pelo passado
A esquerda tentou inventar um futuro. Como ela o imaginou? A direita, sabemos o futuro que deseja: assim como o escritor Kevin Kelly (1952), citado por Novaes, diz que foi preciso muito tempo para compreender que a potência de uma técnica era proporcional à sua “incontrolabilidade” intrínseca, à sua capacidade de nos surpreender, é preciso compreender da mesma forma a potência da direita. Não é assim com o destino das políticas neoliberais, totalmente sem controle e que fazem e aprofundam, numa espécie de espiral maléfica (Baudrillard), mais do mesmo, a destruição do mundo para aumentar seus lucros? Não é assim com a direita, que nos surpreende com suas figuras mais vexatórias, como Pablo Marçal e Donald Trump, este último que chega às vias de fato e é eleito com tudo o que representa? Se a esquerda perdeu espaço, é porque “ela não foi revolucionária o bastante”, como diz Kelly sobre a técnica. A eleição de Trump é o indício da direitização definitiva e radical da política mundial e, como diz o soldado que volta para casa citado por Karl Kraus, “Deus nos livre da ofensiva que nos espera!”. Ver-se-á chegar ao mundo mais morte e doença do que a guerra exigiu dele” (Novaes, p. 15).
O ideal de esquerda caiu de cotação. Basta abrir o jornal para ver que é sempre o modo de ser da direita que está em evidência, o de transformar a cidade em fonte de lucro, e não o de solidariedade. Milton Ribeiro, proprietário da Bamboletras, assim se expressou nas redes sociais: “Estou tão feliz! Porto Alegre é mesmo demaiz. Imaginem que uma construtora irá criar um paralelepípedo de 23 andares próximo ao Embarcadero! Será o “CAIZ Downtown Sunset”! Notem que nome original e criativo! É cais com z, percebem? Vai contribuir para a revitalização do Centro Histórico. O sublime empreendimento terá um “mall” com lojas térreas. Será o próprio mal! Mas então vocês me perguntam: o que haverá no “rooftop“, Milton? Ora, haverá um amplo horizonte para o centro histórico, de um lado, e, do outro, uma vista para o pôr-do-sol, com piscina e espaço de socialização para a elite. Não, a piscina será privada. A vista também. A revitalização também. Porém, a sombra projetada será socializada. O calor resultante também. Idem para a incrível feiura do prédio que substitui casas velhas, históricas e inúteis daquela região da Washington Luís. Mas será pujante, não obstante o fato de que ficará com o “mall” inundado a menor chuvinha, tornando tudo um CAOZ Downtown Sunset. Porto Alegre é demaiz!”
Com seu tom de ironia, que imita inclusive a escrita estilosa do reclame, Ribeiro descreve exatamente o destino da cidade sob a administração neoliberal como destruição do bem-estar da população e da arquitetura de uma cidade. São transformações que jamais seriam pensadas quando a esquerda estava no poder na capital. Com a ascensão de governos de direita em Porto Alegre, vimos o início de uma evolução para pior que nunca mais parou. Essa é a civilização imaginada pela direita, essa é a cidade imaginada pelos neoliberais, o futuro da direita já está acontecendo, enquanto que o imaginado pela esquerda continua apenas lá, onde foi escrito, na Carta de Princípios lançada em 1º de maio de 1979, o documento anterior ao Manifesto de Fundação do Partido dos Trabalhadores. Ali estava escrito o ideal de esquerda, o esboço do que deveria ser uma sociedade justa.
Uma carta voltada para o futuro
A Carta de Princípios do Partido dos Trabalhadores é um documento que merece ser relido nos dias atuais. Se você é de esquerda e quer imaginar o futuro, olha o que ela diz. É o que faço aqui. Ela reconhece que a ideia de um partido dos trabalhadores é uma ideia antiga, e reconhece a natureza perversa da sociedade “baseada na exploração e na desigualdade entre as classes[…] para que lhes seja possível oferecer resistência séria à desenfreada sede de opressão e de privilégios das classes dominantes”. Os anos 70 é o momento em que começa a ser vivida no Brasil a consciência da mudança, a consciência anticapitalista, que tem na greve da Scania de 12 de maio seu ponto histórico fundador. “Desde então, o operariado e os setores proletarizados de nossa população vêm desenvolvendo uma verdadeira avalanche pela melhoria de suas condições de vida e de trabalho. A experiência dessas lutas tem como resultado um visível amadurecimento político da população trabalhadora e o crescimento, em quantidade e qualidade, de suas lideranças.”
Esta é uma época em que manifestos são debatidos, assinados e lançados presencialmente. Quer dizer, esse manifesto é de um tempo antes da internet, pré-internet. Na minha visão, a esquerda começou a perder seu futuro justamente quando teve acesso a ele através da internet, da digitalização da sociedade. Os efeitos da transformação da política real em virtual estão por todo o lugar. Na época do manifesto, nós, os ditos “rebeldes”, fazíamos ações frente a frente; hoje, no tempo da pós-política digital, tudo se perde no emaranhado das “redes”, das “bolhas”. Quem está nas ruas faz movimento social; mas o que faz quem está diante de um computador? O computador, na minha visão, oferece-se como ferramenta neutra, mas o que faz é tirar o movimento das ruas para o colocar nos limites de quatro paredes. Ele oferece segurança, quando o que nos dava força era o risco de estar no espaço público. Por isso, o manifesto fala da importância da “retomada, em toda a linha, das formas clássicas de luta: grandiosidade das assembleias gerais, a ação decisiva dos piquetes e dos fundos de greve”. O futuro depende da presença da esquerda no espaço público.
Aquela era uma época em que a esquerda pensava estrategicamente. Ela sabe de que lado está. Ela não cede a pressões. Ela não negocia com interesses que ultrapassam todos os limites. Ela escolhe seus candidatos com bases sólidas. Diz: “Os patrões usam todos os meios ao seu alcance para quebrar a unidade dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que se recusam a reconhecer os acordos obtidos no período das greves fabris. O governo desencadeia sua repressão: os sindicatos são invadidos e suas direções destituídas oficialmente, enquanto nas ruas a polícia persegue os piquetes e tenta impedir, pela violência, que os trabalhadores consigam local para se reunir”. Estávamos saindo do regime militar e o Estado já revelava que estava a serviço das classes dominantes. Das idas e vindas da esquerda no poder, o governo enfraqueceu sua repressão, mas não seu objetivo de beneficiar as elites. Por isso, para a esquerda, e o manifesto já assinalava isso, é fundamental a existência de “um espírito de solidariedade”. Hoje, ao contrário, negociamos coisas inegociáveis e, o pior, nem sempre escolhemos os melhores candidatos para conquistar a vitória.
A solidariedade de classe como princípio
Outro ponto presente na Carta é que a solidariedade sempre foi um princípio de base, mas entendo que ele sofreu um processo de corrosão. Concordo com o cientista político Luís Felipe Miguel: os movimentos identitários têm notável mérito, mas na medida em que assumem sua própria luta como a definitiva, não se tornam presentes nas demais lutas sociais, como as demais lutas não se fazem presente em seu movimento, se produz uma atomização que só interessa às classes dominantes. Não podemos perder a perspectiva de classe social quando incentivamos as demandas de políticas de gênero. É a atualização do que já ocorria no passado, como diz o documento: “Não puderam os trabalhadores expressar de modo mais consequente todo o seu apoio aos grevistas do ABCD, e essa impotência tenderá a continuar enquanto eles mesmos não se organizarem politicamente em seu próprio partido”. Não é a mesma impotência que alguns analistas veem se manifestar nos movimentos identitários com relação à esquerda?
Nesse tempo, a renovação de quadros era valorizada. Parece que, agora, a esquerda teme indicar os “militantes de base mais capacitados e devotados, a quem caberá a tarefa de construir e liderar nosso partido”, como diz o documento. Não se criam políticas solidárias sem grandes lideranças, e elas precisam nascer, os mais velhos precisam abrir espaço para os mais novos. No passado, a esquerda acreditava nas novas lideranças; no presente, parece que só acredita que as antigas tenham alguma sorte; no passado, sabia que existia uma “fachada democrática”, partidos que elegiam governantes dos patrões. Ali já estava enunciado o germe da direita: a de que poderiam, pela via democrática, chegar ao poder, usar a tal “fachada democrática”, que levou ao poder de Trump ao “homem do chapéu de palha”.
A esquerda precisa fazer a pergunta: onde foram parar as “massas exploradas”, o “movimento de trabalhadores”, o que constituía a “nova etapa histórica que se inaugurava no Brasil”, nos termos do documento? O documento mostra que as lideranças sabiam analisar as contradições de seu tempo, de que “o processo chamado de abertura política estava sendo promovido pelos mesmos grupos que sustentaram e defenderam o regime hoje em crise”. A etapa de surgimento do PT correspondeu a uma reação ao fato de que “os detentores do poder procuram agora, e até este momento com relativo êxito, reformar o regime de cima para baixo. Vale dizer, pretendem reformar alguns aspectos do regime, mantendo o controle do Estado, a fim de evitar alterações no modelo de desenvolvimento econômico, que só a eles interessa e que se baseia, sobretudo, na superexploração das massas trabalhadoras, através do modelo econômico do qual sobressai o arrocho salarial.”
Esse tipo de análise é notável, é o que a esquerda faz de melhor: a atual precisa voltar a fazê-la. Isso se faz verificando quem são os novos atores da dominação: saem o governo militar em aliança com o capital financeiro e entra o capital especulativo. São os novos “donos da cidade”, como diz o pesquisador da UFRGS Marcelo Kunrath Silva. Como diz o documento, “as armas da direita continuam as mesmas: política de austeridade, recessão”, à qual se soma hoje a tomada do poder. Seu diagnóstico também continua perfeito: “Isso significa que o sofrimento, a miséria material e a opressão política sobre a população trabalhadora tenderão a se manter e aprofundar”. Não é uma descrição perfeita do que vemos hoje sob o manto das políticas neoliberais? Se antes o documento perguntava “o que visam com a propalada reforma da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]”, agora se pergunta “o que pretendem com a reforma orçamentária de Lula”? Se antes uma política de conciliação ainda era desejada, agora nem isso. Fim de qualquer princípio de solidariedade.
Ampliar a crítica ao MDB
A esquerda reconhecia então a existência de “políticos honestamente comprometidos com as lutas populares no MDB”. Hoje, as denúncias envolvendo Pablo Melo, filho do prefeito, mostram que até o partido que foi base do processo de redemocratização também caiu na vala comum da corrupção. O documento reconhecia que o MDB da época já era insuficiente para representar os trabalhadores, já que nele predominavam “os interesses dos patrões”. Não ocorre o mesmo com o atual governo municipal, com suas medidas em defesa da flexibilização urbanística que beneficiam os grandes empreiteiros? No passado, o documento questiona “a conduta vacilante de parcelas significativas de seus quadros quando da votação da emenda Accioly, da lei antigreve e de outras medidas de interesse dos trabalhadores.” Agora suas medidas pró-empreiteiros afetam toda a cidade. Onde isso irá parar?
Seu diagnóstico de que “o MDB tem-se revelado impermeável aos temas sociais e políticos que tocam, de fato, nos interesses das massas trabalhadoras” continua intacto porque em momento algum podemos aceitar a subordinação dos interesses políticos e sociais das massas trabalhadoras a uma direção liberal conservadora, de extração privilegiada economicamente”. O fato de que o atual prefeito tenha conquistado seu segundo mandato mostra que ele é ainda uma pedra no sapato da esquerda. Por isso, é preciso reforçar suas diferenças, de que a esquerda tinha uma posição definitiva: “O PT considera imprescindível que todos os setores sociais e correntes políticas interessados na luta pela democratização do país e na luta contra o domínio do capital monopolista unifiquem sua ação, estabelecendo frentes interpartidárias que objetivem conquistas comuns imediatas e envolvam não somente uma ação meramente parlamentar, mas uma verdadeira atividade política que abranja todos os aspectos da vida nacional.” O que exige, nos tempos atuais, reforçar a denúncia das alianças do partido com o grande capital, o que a campanha de Maria do Rosário foi incapaz de fazer e resultou em sua derrota.
Somente criticando o modelo econômico defendido pela oposição e que ela oculta é que a esquerda poderá construir seu futuro. Era a atitude da esquerda no passado: “O Partido dos Trabalhadores denuncia o modelo econômico vigente [que] utiliza essas empresas e os recursos do Estado, em geral, como molas mestras da acumulação capitalista.” Essa luta não era apenas no interior das instituições, era “ intimamente ligada com o processo de organização popular, nos locais de trabalho e de moradia.” Não é apenas um foco de luta, mas a eleição de um processo. Nesse sentido, era um partido de base, do chão da comunidade, do chão da fábrica. Lá, hoje, ele não existe mais. Como poderá “implantar o governo dos trabalhadores”, como diz o documento, se não está mais em seu meio? E como atingirá seu principal objetivo, “ acabar com a relação de exploração do homem pelo homem”? Distanciado das massas populares, dos operários, de toda a massa explorada, como diz o documento, e hoje incapaz de atingir outras camadas profissionais como os trabalhadores de aplicativos, como se sustentará? Como atingirá a sociedade que então almejava, a “sociedade socialista e democrática”? Por isso, o diagnóstico que ele fazia, de que o partido “tem de ser, ele próprio, democrático nas relações que se estabelecem em seu interior”, é um duro recado para o Presidente que já escolheu os candidatos a governador e senador do RS: é porque abraçou o que antes negava que o PT perdeu seu espaço. Deixou de ser… esquerda!
Educar para revolução
Era um partido preocupado com a educação política das massas para elevar o grau de mobilização, organização e conscientização visando “a independência política e ideológica dos setores populares”. Foi por essa razão que, por mais de 30 anos, dediquei-me à educação para cidadania na Câmara Municipal. Eu, formado nas gerações da esquerda dos anos 80, acreditava que podia alcançar o povo através da educação: fiz de tudo para que meus alunos compreendessem as diferenças entre ricos e pobres, trabalhadores e capitalistas, na certeza de que um dia fariam as opções políticas corretas. Eu estava enganado. Os alunos que se transformaram em cidadãos terminaram por votar em projetos que lutam para reduzir seus direitos, não ampliá-los. Entendo que voltar à educação das massas é fundamental para o retorno da esquerda, o que significa colaborar para o entendimento da nova fase do capitalismo em que vivemos, quem são seus representantes e o que pode ser feito para combatê-lo. A esquerda precisa investir em uma educação anticapitalista.
Isso não pode ser feito sem a combinação de algo que estava lá no início, a preocupação com a disseminação de seus ideais através da implantação de “núcleos de militantes em todos os locais de trabalho, em sindicatos, bairros, municípios e regiões.” Era assim nos anos 80 em Porto Alegre. Numa época em que eu era apenas um estudante secundário, me lembro de participar de reuniões de um nascente PT na capital, junto ao Bom Fim. Grandes intelectuais da cidade, como Pilla Vares, colocavam sua inteligência e saber a serviço da esquerda e que, quando chegou ao poder, eu mesmo escolhi estudar História, um curso de Humanas, por sua influência, na certeza de poder dar minha contribuição. Nessa época, a esquerda dispunha de grandes quadros para efetivar seu projeto, de “intensa solidariedade com todas as massas oprimidas do mundo”, finaliza o documento que é o testemunho do sonho de uma época e de uma geração de esquerda da qual fui parte.
Quando aqui se diz que “o futuro da esquerda está em seu passado”, é disso que se trata: é preciso voltar aos textos dos “Pais Fundadores da Esquerda”, é preciso retomar nele o conceito marxista da situação revolucionária, isto é, daquela que exige uma transformação radical, que, como diz Slavoj Zizek em seu O sublime objeto da ideologia (Civilização Brasileira, 2024), é aquela em que “finalmente, fica claro para a consciência cotidiana que não é possível solucionar nenhuma questão particular sem solucionar todas – isto é, sem resolver a questão fundamental que incorpora o caráter antagônico da totalidade social” (Zizek, p. 28). Enquanto as relações sociais forem dominadas pelo Capital, enquanto a esquerda perguntar a ele o que deve fazer, como construir seu futuro, tudo estará perdido. A esquerda precisa perguntar é a si mesma.
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Foto da Capa: Memorial da Democracia