Futuro Ancestral é o título e uma expressão apresentada no livro de Ailton Krenak que tem sido exaustivamente repetida por ambientalistas, defensores dos povos originários e espiritualistas em geral, com as mais variadas nuances e interpretações. O livro não foi propriamente escrito por Krenak. Se trata de um conjunto de textos elaborados por Rita Carelli a partir de aulas, palestras e debates em que ele apresenta reflexões sobre o mundo, passado e futuro.
No início do livro está escrito: “os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há um futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”.
A interpretação literal desse conceito é que estamos fazendo tudo errado “nessa sociedade de consumismo desenfreado e uma visão estreita e excludente do que é humanidade1” e que a solução é voltarmos a viver como viviam os indígenas. Tomada ao pé da letra, a visão de Krenak de um mundo em que o rio é “um ser”, as montanhas apresentam emoções humanas e há espíritos por toda parte pode ser considerada apenas um conjunto de crendices. Mas não me parece ser isso que ele propõe, como veremos adiante.
De certa forma, a visão literal do “futuro ancestral” se trata de uma versão atualizada do conceito “o bom selvagem” popularizado por Jean Jacques Rosseau2. O conceito, ou mito do bom selvagem, surgiu a partir do contato dos europeus com as populações indígenas das Américas. Segundo ele, as pessoas seriam naturalmente boas e ingênuas e seriam corrompidas pelo processo civilizatório.
Esse conceito não poderia estar mais equivocado. Primeiro porque os povos indígenas das Américas não eram diferentes dos demais. Viviam em guerras uns com os outros, devoravam seus inimigos, sacrificavam crianças e, com exceção de algumas civilizações, como os Maias, os Astecas e os Incas, viviam essencialmente na ignorância da Idade da Pedra Lascada. Sua vida era curta e muitas vezes brutal. Quando os europeus chegaram no Brasil, muitos indígenas se uniram a eles para capturar, escravizar ou matar outros indígenas. O mito do bom selvagem é isso, apenas um mito.
A evolução civilizatória da maior parte das sociedades do mundo, principalmente depois da revolução industrial, propiciou enorme progresso e bem-estar para a maior parte da população. Mesmo em países em desenvolvimento, a qualidade de vida hoje é muito melhor do que, digamos, na Europa da Idade Média, e mais ainda se comparada às sociedades mais antigas. Nostalgia do passado não faz nenhum sentido.
Isso tudo foi possível graças ao desenvolvimento científico e tecnológico. Apesar de todas as informações que recebemos sobre guerras, criminalidade, pobreza e fome, o mundo de hoje é muito melhor do que em qualquer época no passado. Vivemos com mais conforto, segurança, e vivemos mais tempo. A expectativa de vida, no século XX, deu um salto jamais visto em toda a história humana. Nos países mais desenvolvidos da Europa era de 40 anos em 1900 e subiu para 80 anos no ano 2000. No Brasil ela aumentou de 29 anos em 1900 para 76,6 anos em 2020.
Krenak, eu presumo, sabe tudo isso. O que ele alerta é para o lado sombrio do desenvolvimento. Em algum momento, perdemos nosso rumo civilizatório e agora estamos caminhando no sentido da nossa própria destruição. Estamos consumindo 1,7 planetas a cada ano com nosso materialismo desenfreado. Nossa busca incessante de lucro e poder a qualquer custo, nossa necessidade de ter cada vez mais, fazer cada vez mais, ganhar dinheiro para depois gastá-lo em coisas supérfluas, tudo isso impulsionado por redes sociais que utilizam as emoções humanas mais primárias para nos guiar feito um rebanho para o matadouro.
É insano que uma civilização que tenha alcançado o grau de desenvolvimento científico e tecnológico que nós alcançamos, não enxergue que está destruindo o planeta que é sua casa. O único lugar conhecido no vasto universo onde as condições são favoráveis para nossa existência. Não se iluda, não há saída no espaço. Pelo menos por muito tempo. O espaço, e todos os demais planetas conhecidos, são lugares extremamente inóspitos para a vida humana.
Krenak nos lembra de uma característica dos povos indígenas não só do Brasil, mas de todo o mundo, que pode nos ajudar nesse momento: o profundo respeito pela natureza. Não se trata de adotar uma visão mágica do mundo. Nós sabemos que um rio é apenas um certo volume d’água em movimento, que as pedras não são seres com sentimentos (Raul Seixas que nos perdoe)³, e que o vento não é um espírito, mas apenas o ar se movendo em função de diferenças de pressão e temperatura.
Muito menos podemos pensar em viver como viviam os povos primitivos. Além de ser uma visão idílica equivocada, é impossível colocarmos 8 bilhões de pessoas a viver como caçadores coletores espalhados por florestas que nem existem mais.
O que nós perdemos, e os povos indígenas mantém, é a noção de que estamos profundamente interligados com a natureza. Que ela não é algo para ser “vencido”, e sim nossa parceira na busca de uma sociedade mais sustentável.
Se o mau uso da ciência e, principalmente, da tecnologia é que nos colocaram nessa enrascada, será o bom uso delas que vai nos propiciar as soluções para que possamos manter nosso padrão de vida ao mesmo tempo em que preservamos o planeta. Mas para que isso ocorra, é necessária uma mudança de atitude “de dentro para fora”.
Se continuarmos colocando as conquistas materiais acima de tudo, se continuarmos a agir como se a natureza só existisse para nos servir, se considerarmos que é mais importante aparecer bem nas redes sociais do que realmente viver uma vida feliz e completa, não vamos conseguir escapar de um destino tenebroso.
Você não precisa conhecer Paris para ser feliz. Nem ir para aquele resort fantástico que acabaram de anunciar no seu celular. Não precisa de um crossover enorme cheio de tecnologia que você vai usar para dirigir para o supermercado. Não precisa ser escravo da fast fashion, que faz como que você jogue suas roupas fora a cada mudança de estação. Não precisa mostrar nas redes sociais todo dia como sua vida é divertida, excitante e glamurosa. Você não precisa nada disso. Quem te convence que você precisa disso são os algoritmos das redes sociais e outras mídias, que a cada dia dominam mais a sua mente.
Temos que recuperar nossa essência. Somos seres que fazem parte do mundo natural e dependemos dele para sobreviver. O desequilíbrio que estamos provocando nos sistemas dinâmicos da Terra, como eu expliquei em coluna anterior, compromete toda a rede de vida do planeta e ameaça nossa própria existência. O colapso planetário apenas começa a dar seus primeiros sinais. Quem estuda o clima e os ecossistemas do planeta, incluindo aqueles em que estamos profundamente inseridos, está verdadeiramente assustado.
Quando escrevi meu livro “Planeta Hostil”4, os primeiros revisores me disseram: “Nossa, é difícil dormir depois de ler seu livro!” Eu não quero tirar o sono de ninguém, mas o fato é que se precisamos olhar o monstro nos olhos e combatê-lo com todas as forças. Todos nós somos vítimas e vilões da degradação ambiental do planeta. O “monstro”, portanto, não está longe. Para começar a encará-lo, o primeiro passo é se olhar no espelho.
Notas:
1Expressão extraída do livro “A Vida não é Útil”, de Ailton Krenak e Rita Carelli (Org.), Companhia das Letras, 2020.
2O conceito, ou mito do bom selvagem, surgiu na Europa após o primeiro contato com os povos indígenas da América e foi popularizado pelo filósofo franco-suíço Jean-Jacques Rousseau no século XVIII. Rousseau acreditava que o homem era bom por natureza e que a sociedade o corrompia com valores e hábitos que o levavam ao conflito. O mito do bom selvagem foi amplamente retomado pelos autores românticos, que o usaram para enaltecer a cultura nacional. A produção literária com temática indígena ficou conhecida como "romance indianista". O mito tem sido desmentido por inúmeros estudos antropológicos que demonstram que as sociedades primitivas apresentavam a maior parte das características básicas observadas nos humanos modernos.
3Um verso da canção “Medo Da Chuva”, de Raul Seixas, diz que “aprendi... o segredo da vida, vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”.
4O livro “Planeta Hostil” descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta. Pode ser uma leitura difícil, mas é necessária. O livro pode ser adquirido em livrarias físicas e online de todo o Brasil, no site da editora Matrix (www.matrixeditora.com.br) e em lojas online.
Observação final: para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Tânia Rego / Agência Brasil
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