Semana passada assisti Marília Gabriela dizer para Astrid Fontenelle, no “Admiráveis Conselheiras” do GNT, que fez da sua vida profissional a sua vida pessoal e que, hoje, aos 76 anos, ela reconhece que essa opção virou consequência: “Eu sou muito sozinha.” Eu me identifiquei por inteiro, também fiz da minha vida profissional a minha vida social e sou bem sozinha. Acaba acontecendo que, quando nos afastamos da ocupação formal, sentimos falta das pessoas, da dança corporal e mental que acontece nos ambientes de trabalho. Em especial dos verdadeiros amigos que cultivamos na jornada, aqueles que podemos até nunca mais ver, mas vamos amar por toda a vida. Tenho amigos assim da minha época de redações em Porto Alegre e São Paulo, e são muitos, afortunadamente. Mas posso dizer que quem mais falta me faz é o Luiz Carlos Merten.
Começamos a trabalhar juntos na Gazeta Mercantil Sul, em 1984, e desenvolvemos o hábito de, no final da tarde, fazermos um “lanche” – mocotó com cerveja – no bar da esquina da rua Washington Luiz, antes do fechamento do jornal. Quando a redação mudou para o centro da cidade, já como Diário do Sul, arranjamos outro bar nas imediações – batia 18h, nem precisava sinal, nos encontrávamos no elevador e lá íamos tagarelando. Na mudança para São Paulo, eu trabalhei no Jornal da Tarde e o Merten estava no Estadão, as redações eram no mesmo andar, mas enormes e separadas por um longo corredor. Lá pelas tantas, o Merten me apresentou para o José Onofre, editor do Caderno 2, e eu fui para o Estadão. Ali estávamos, juntos novamente, uma felicidade! Mas na Marginal do Tietê não havia bares próximos e nossa happy hour ficou seriamente comprometida.
Desenvolvemos o hábito, então, de almoçarmos nos fins de semana. Alternávamos o meu apartamento, na Bela Vista, e a casa do Merten, em Pinheiros, com uma feira maravilhosa bem próxima, onde fazíamos as compras para preparar a comida. E espichávamos as tardes a conversar. Eu não sinto a solidão como a Marília Gabriela, porque tenho um perfil muito reservado desde jovem, sou introvertida ou bicho do mato mesmo – na infância meu apelido era Bugra. Mas daquela convivência diária que eu tinha com o Merten sinto falta hoje, muita falta. Talvez também porque depois da morte do meu marido Divino Fonseca, há quase dois anos, eu tenha ficado, de fato, sozinha, pois por 22 anos fomos mais do que um casal, fomos amigos inseparáveis. É preciso destacar que a família nos preenche – eu tirei a sorte grande, pois meu filho é tudo de ótimo, simplesmente maravilhoso – mas é outro departamento, distinto do social.
Feita esta introdução, quero brindar vocês com o blog de cinema do Merten, que é uma preciosidade, um canal absolutamente singular. Merten é um conhecedor de cinema até a medula, ele respira cinema, vive para o cinema, é como se ele e o cinema formassem um só corpo, uma intimidade profunda, paixão, amor. São décadas e décadas de escrita e convívio, entrevistas com diretores, atrizes e atores de todos os calibres, que ele desfia muito além da crítica na imprensa e nos seus livros. Merten promove um pensar o cinema, um sentir o cinema. Frequentemente vou às lágrimas lendo os seus textos – só na semana passada foram duas vezes, com Coringa – Delírio a Dois e Antônio Cândido – Anotações Finais. Vejam um trecho deste último: “(…) Fernando Henrique virou o príncipe da privataria e boa parte do descalabro que virou o Brasil deve-se a essa entrega do País – e seus recursos – à iniciativa privada. O próprio nome indica. Ela é privada, atende aos interesses de grupos – de classe -, não do Brasil e da imensa massa de brasileiros despossuídos. De cara, identificando na libertação dos escravos e na não inclusão dos pretos na sociedade brasileira uma das grandes tragédias da (des)organização social do Brasil, Antônio Cândido evoca a consciência de classe.
Não tenho falado outra coisa no blog. Em nome de uma tal correção política, as pautas identitárias prevalecem sobre as políticas e sociais. Cada grupo – pretos, mulheres, trans, indígenas, todo o universo, LGBT – defende o que considera sua pauta e todo mundo briga entre si, e com os simpatizantes. E isso só tem favorecido o desmantelamento de tudo. Antônio Cândido veio de uma elite alimentada pelas luzes francesas. Liberté, egalité, fraternité. As anotações finais integram o conjunto dos cadernos que ele escreveu ao longo da vida e que foram deixados numa estante, ou prateleira, no apartamento em que vivia. Escorel agradece às filhas de AC, que lhe permitiram extrair dos últimos cadernos, de 2015 a 2017, as anotações finais. Douglaspizza diz que se diverte quando falo de Parasita. Lamento sempre a falta de dialética no longa de Bong Joon-ho. Dialética – quem ainda se preocupa com isso? A maioria dos influencers nem deve saber do que se trata. Dialética, interdisciplinidade. Comparação. Foram ferramentas que AC usou para pensar a literatura, e o Brasil. O Suplemento Literário que ele criou no Estadão virou um marco do pensamento crítico no Brasil. E é assim que AC reflete sobre o processo de impeachment de Dilma, proposto e conduzido pelo celerado – pelo criminoso – Eduardo Cunha. (…)”.
Essa é a genialidade do Blog do Merten, uma costura dinâmica, intensa e moderna de cinema com o mundo, tudo é contextualizado. É o intelectual que acompanha a atualidade no seu desenrolar inquietante e não abre mão de refletir, de opinar. Em Belo Horizonte, ele escreveu que, saindo para as atividades do dia no 18º CineBH, se deu conta de que no sábado, 28, comemoravam-se os 100 anos de nascimento de Marcello Mastroianni e os 90 de Brigitte Bardot, e que no dia 20, foram os 90 anos de Sophia Loren. Então discorreu sobre as programações memorativas, os filmes e as vidas desses grandes. “(…) A segunda mulher mais bela do mundo – a primeira, claro, era Liz Taylor – recusou-se a fazer qualquer procedimento estético para mascarar o envelhecimento. Sofre de artrose e, no ano passado, precisou de atendimento de urgência devido a uma crise respiratória. Já que falei em Delon anteriormente – o jovem Alain foi, talvez, o homem mais belo do cinema -, é curioso constatar como Brigitte e ele envelheceram mal. Exagero, mas talvez tenham passado a expressar fisicamente aquilo em que se transformaram internamente. (…) Brigitte virou uma sem-noção. Chama o papa Francisco de idiota, considera o movimento ambientalista uma farsa, o quarto marido foi, ainda é, o ex-conselheiro político de Jean-Marie Le Pen, o pai de Marina. Vive em seu refúgio de La Madrague cercada pelos cães e gatos que recolhe das ruas. Criou uma nova fama, de velha louca. (…) De Brigitte sempre terei, no meu imaginário, a Penélope moderna de Le Mépris, que não espera mais seu Ulisses porque o homem moderno, e nisso Godard está certíssimo, também perdeu a dimensão épica do herói homérico. Lembrem-se de que, no filme dentro do filme, Fritz Lang filma sua versão da Odisseia com… estátuas!”.
Ao ler o blog, a gente quer imediatamente ver os filmes, mas nunca conseguiremos acompanhar o ritmo do Merten. Recebo todos os dias da semana a newsletter, porque mesmo sábados e domingos ele faz postagens e, às vezes, chegam a três ou quatro em um mesmo dia. Ele nunca assiste um só filme a cada dia, é sempre dois, três, quatro filmes ou mais, contando os presenciais nas salas de cinema de São Paulo – e nos inúmeros festivais que cobre no Brasil e no mundo – mais os que ele zapeia pela TV em casa, um prodígio. Segunda-feira passada, 30.09, ele estava voltando de Belo Horizonte para São Paulo e na quinta-feira, dia 03.10, já embarcando para o Rio de Janeiro, para o Festival do Rio, de 3 a 13: “(…) é uma maratona, como será a Mostra de São Paulo, na sequência. Vai exibir cerca de 300 filmes distribuídos em diversas seções. A menina dos olhos do Festival do Rio é a Première Brasil, a grande vitrine da produção nacional, que se divide ela própria em várias seções. (…)” Detalhe: Merten está com 79 anos e quando a gente se surpreende com tamanha movimentação ele diz, “da disposição cuido eu”. E ainda nos oferece a delícia de contar algumas de suas rotinas, como o seu gosto por ver a vida passar na esquina da Ipiranga com a av. São João ou em uma mesa de calçada de algum café em Paris, dando, inclusive, pitacos sobre moda. Estou terminando esta coluna sábado pela manhã, e recebo outro texto monumental: “Festival do Rio (3)/Ainda Almodóvar, o enigma Leni Riefenstahl e a dupla Angela Molina/Alfredo Castro de Ao Pó Voltaremos” – não deixem de ler! Tenho certeza que vocês vão amar o Blog do Merten, que pode ser acessado também pelo Bluesky.
Deixo dois links bem legais pra conhecer um pouco mais o Merten:
Judão
ABI
E links de vídeos com ele:
Cultura Estadão
Cultura UOL
Foto da Capa: Montagem da autora com arquivo pessoal e capas dos livros de Luiz Carlos Merten
Todos os textos de Vera Moreira estão AQUI.