Genocídios, crimes e desastres ambientais, desabamento de viadutos e ciclovias, incêndios em locais públicos com a morte de pessoas, barragens rompidas, recursos públicos são desviados para os bolsos de políticos e seus familiares, processos intermináveis ou que tratam de crimes relevantes prescritos ou anulados, são notícias que com frequência são exibidas nos jornais, na internet, nas emissoras de rádio e televisão, e assimiladas com uma naturalidade assustadora, pelos brasileiros.
A banalização do mal que surge com ausência de um pensamento crítico, da falta de reflexão, da naturalização das coisas ruins como normais, da paixão dos brasileiros pelos seus políticos, e do silêncio dos que poderiam reclamar, procurar as instituições e órgãos públicos, promover a justiça enfim. E esse silêncio eloquente e a sensação de que não há o que fazer contra a impunidade são um adubo fértil para que a ineficiência e o mal se repitam. Chegamos a um tempo em que, algumas vezes, aqueles que deveriam fiscalizar os locais, as instalações, repreender as ações criminosas, promover e proteger a saúde pública, a segurança, a assistência social e o respeito aos direitos humanos sequer se tornam réus pelas suas omissões, que obviamente são penalmente relevantes, contribuíram em muito para que os eventos danosos acontecessem.
Desse modo, como quem poderia fazer alguma coisa está em uma zona de muito conforto, a impunidade grassa e novas tragédias e crimes, que poderiam ser evitados se houvesse fiscalização e um poder público mais atuante, acontecem.
Há uma sensação de que a população paga uma tributação imensa para que a Administração Pública possa fiscalizar empreendimentos, obras e serviços, tenha um corpo técnico adequado para conceder as licenças administrativas previstas nas diversas leis, para inspecionar, multar, conceder alvarás para os empreendimentos, obras ou execução de serviços, para promover a saúde, a segurança das pessoas, a justiça, mas que mesmo assim a contrapartida é bem insatisfatória.
Veja-se que com relativa frequência acontecem crimes ambientais, homicídios, acidentes ou tragédias que poderiam ter sido evitados, se houvesse uma presença maior do Estado, exercendo com maior eficiência seu poder de polícia em todas as áreas cuja sua intervenção é necessária.
Em 31 de outubro de 2022, foi publicado AQUI na Sler, um artigo de minha autoria no qual expliquei quais são os atos que caracterizam o crime de genocídio no Brasil.
I – alguém, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;
II – Associarem-se mais de 3 (três) pessoas para prática dos crimes mencionados acima;
III – Alguém incitar direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes de que trata o item I, acima.
Nas últimas semanas causou grande repercussão a divulgação pelo Ministério dos Povos Indígenas de que, no ano passado, 99 crianças, entre um e 4 anos, morreram nas terras Yanonamis em razão do avanço do garimpo ilegal em Roraima, sendo que as principais causas das mortes foram a desnutrição, pneumonia e diarreia. O Ministério estima que pelo menos 570 crianças tenham morrido pela contaminação por mercúrio, desnutrição e fome.
As fotos das pessoas esquálidas, das crianças em pele e osso, ou mortas são assustadoras, de entristecer ou causar compaixão em qualquer ser humano normal, com um mínimo de empatia, de amor ao próximo. Mas o fato é que o genocídio dos povos indígenas, especialmente dos Yanomanis é algo que acontece continuamente há décadas, e muito pouco foi feito para protegê-los nesses anos todos.
Como mencionei no artigo de outubro de 2022 já houve no Brasil a condenação de grileiros, em Roraima, por genocídio, em razão do assassinato, em 23 de julho de 1994, de 12 indígenas Yanomamis a tiros e golpes de facão, sendo que 5 vítimas eram crianças. Esse genocídio ficou conhecido como o massacre de Haximu.
Vale lembrar que os autores desse massacre foram acusados de diversos crimes, todos em conexão com o crime de genocídio e associação para o genocídio, e que cinco deles foram condenados a penas de 19 a 20 anos de prisão, mas que essa condenação foi anulada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região que entendeu que a competência para o julgamento seria do Tribunal do Juri.
Felizmente, em 2000, houve uma reviravolta, pois o Superior Tribunal de Justiça seguiu a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) que entende que o genocídio contra os indígenas deve ser julgado pelo juízo singular federal, como havia ocorrido inicialmente. Mas a efetiva condenação somente veio a ocorrer com trânsito em julgado (não admite mais recursos), em 2006, quando esse caso foi examinado pelo STF que manteve a condenação, sendo que a prisão de um dos condenados, o garimpeiro Eliézio Monteiro Neri, que encontrava-se foragido somente ocorreu em no dia 05 outubro de outubro de 2022. Difícil acreditar na justiça, quando o Estado demora tantos anos para punir os criminosos.
Cumpre destacar que, em 13 de outubro de 2021, a Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, enviou o Ofício n. 19/2021-CEDDPI/CFOAB ao Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada para apurar as ações e omissões da Administração Pública da União, no enfrentamento da pandemia do coronavírus, com as “Considerações sobre as condutas do Presidente da República e Outros Agentes em Relação a Política Indigenista e de atenção à saúde indígena”, que concluiu em síntese pela existência de graves indícios da prática de genocídio pela sujeição de Povos Indígenas a condições de vida tendentes a provocar a destruição física, total ou parcialmente, mas que foram retirados do relatório final da CPI os indiciamentos de genocídio e homicídio.
Mas para a desgraça do negacionismo que tomou conta do Brasil, o registro das mortes, os doentes e famintos estão tendo visibilidade. Espero que essa visibilidade não seja de “apenas 15 minutos”, como dizia Andy Warhol, pois não estamos falando de fama, mas sim de um sofrimento atroz impingido aos indígenas.
Como expliquei no artigo publicado aqui na Sler, no dia 23 de janeiro de 2023, “Quais os crimes apontados por Alexandre de Moraes para os invasores de Brasília”, as omissões de quem deveria agir para evitar um resultado danoso, ou de quem de outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o resultado, ou de quem com seu comportamento anterior criou o risco de ocorrência do resultado, são penalmente relevantes, e essas pessoas, chamadas garantes, também devem responder pelos crimes cometidos contra os Yanomamis e pelos crimes ambientais, ainda esses crimes tenham ocorrido em consequência da ação dos garimpeiros ou de danos ambientais causados por terceiros.
Pela gravidade dos fatos, pela extensão imensa do garimpo, e diante do número de vezes que os Yanomamis pediram socorro para a Administração Pública, não é aceitável que os agentes políticos legalmente responsáveis por proteger os Yanomamis, suas terras, suas crianças, seus velhos, sua cultura, sua saúde, seus direitos humanos e o meio ambiente em Roraima e na floresta amazônica, fiquem impunes, levando-se em conta o tamanho da tragédia, do número de mortos, do genocídio a que estão sendo submetidos reiteradamente no Brasil.
Espero que o Ministério Público vá para cima deles, e que a justiça puna exemplarmente não só os garimpeiros e empresários que causaram toda a contaminação e as doenças que estão a matar os Yanomamis, mas também os agentes políticos que tinham a obrigação de defendê-los, de protegê-los, acudi-los, de levar alimentos, medicamentos e assistência social aos Yanomamis, e também de zelar pelos seus direitos humanos, pelo meio ambiente em Roraima e na floresta amazônica.
Somente com a justiça exercendo seu poder contra os criminosos, teremos um Brasil melhor, mais digno, mais justo.