O Rio Grande do Sul é o único estado onde seus conterrâneos conhecem e cantam seu hino estadual frequentemente. Levantar durante o Hino é um movimento involuntário. Várias vezes no estádio Beira-Rio, durante o Campeonato brasileiro, o Hino Nacional foi abafado pelo Hino Riograndense cantado a plenos pulmões pela torcida. É que a organização do campeonato retirou do cerimonial a execução do hino local, levando os gaúchos a cometer a grosseria de atalhar o Hino brasileiro.
Riograndenses se emocionam cantando o hino, que os remete a um sentimento de unidade e identidade, façanhas heroicas de um povo que conviveu com fronteiras secas que tiveram de ser conquistadas com muito sangue, aço de espadas e heroísmo contra os nada amigáveis castelhanos. Na então província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Farroupilhas lutaram 10 anos contra um império, criaram uma república inspirada nos mais altos valores da época: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Sim, fomos derrotados, mas, o Império precisou mobilizar um país continental para derrotar quem foi apelidado de farrapos pelo péssimo estado das roupas.
Neste chão, o italiano Garibaldi e suas tropas carregaram nas costas, pelo pampa, o barco Seival, com seus 15 metros de comprimento e 12 de altura, para chegar ao litoral e partir pra conquistar Laguna, em Santa Catarina, o porto tão necessário para o sucesso revolucionário. O porto de Rio Grande, no extremo sul, estava na mão dos imperiais. Guiseppe derrotou a Marinha Imperial e conquistou Laguna.
Na causa Farroupilha também lutou a catarinense Anita Garibaldi, nossa Joana D´Arc, que se engajou na luta cruenta pela manutenção de Laguna, atravessando uma dúzia de vezes o fogo cruzado em uma pequena lancha para trazer munições aos revolucionários. Capturada na Batalha de Curitibanos, conseguiu fugir grávida das tropas imperais depois de enganar os soldados e tomar um cavalo. Lutou pelo Rio Grande, lutou pela unificação italiana ao lado de seu marido Garibaldi. Aliás, Garibaldi do seu barco com uma luneta viu Anita passeando por Laguna e imediatamente partiu para procurá-la. Já desistindo, foi convidado para tomar um café por um lagunense e naquela casa estava ela. Ele escreveu nas suas memórias:
“Entramos, e a primeira pessoa que se aproximou era aquela cujo aspecto me tinha feito desembarcar. Era Anita! A mãe de meus filhos! A companhia de minha vida, na boa e na má fortuna. A mulher cuja coragem desejei tantas vezes. Ficamos ambos estáticos e silenciosos, olhando-se reciprocamente, como duas pessoas que não se vissem pela primeira vez e que buscam na aproximação alguma coisa como uma reminiscência. Saudei-a finalmente e disse-lhe: ‘Tu deves ser minha!’. Eu falava pouco o português, e articulei as provocantes palavras em italiano. Contudo fui magnético na minha insolência. Havia atado um nó, decretado uma sentença que somente a morte poderia desfazer. Eu tinha encontrado um tesouro proibido, mas um tesouro de grande valor.”
Nesse chão ainda se consegue escutar o barulho abafado da brava tropa de Lanceiros Negros com o casco dos seus cavalos cortando o mar verde dos pampas. Ex-trabalhadores rurais, domadores e tropeiros das charqueadas, esses negros livres derrotaram tropas imperais regulares em batalhas épicas como a do Seival.
Daqui partiu Getúlio Vargas para depor a velha república de Washington Luís. Cavalos amarrados no Obelisco da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, anunciaram a vitória gaúcha. “Rio Grande, de pé pelo Brasil!” bradava a propaganda ufanista.
Quem nunca ouviu falar de Leonel de Moura Brizola colocando o estado em armas contra o golpe de estado tentado pelos militares contra João Goulart, na chamada Campanha da Legalidade? Porto Alegre tomada por barricadas, tropas de resistência sobre o Palácio Piratini esperando o ataque aéreo que parece que nunca se realizou pela sabotagem feita nos aviões da Base Aérea de Canoas.
Em setembro é montado um acampamento na capital riograndense, uma cidade de piquetes (casas rústicas de madeira), pra saudar a epopeia farroupilha, onde as pessoas confraternizam cantando músicas nativas e comendo churrasco. As músicas são interrompidas com frequência para o Hino do Rio Grande do Sul ser cantando de forma espontânea por gaúchos e gaúchas de todas as idades que não raro o fazem com os olhos marejados:
“Como a aurora precursora
Do farol da divindade
Foi o 20 de setembro
O precursor da liberdade
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda Terra
De modelo a toda Terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda Terra
Mas não basta, pra ser livre
Ser forte, aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda Terra
De modelo a toda Terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda Terra”
Hino Nacional se executa, Hino do Rio Grande do Sul se canta.
A letra do hino foi escrita por Francisco Pinto da Fontoura, tem música do maestro Joaquim José de Mendanha (foto da capa) e harmonização de Antônio Corte Real. Sua versão atual remonta 1933. Mendanha era negro, mineiro e acabou aprisionado com sua banda na cidade gaúcha de Rio Pardo depois da Batalha do Barro Vermelho. Especula-se se sua participação no hino teria sido espontânea ou decorrente da condição de prisioneiro.
Em 2021, na cerimônia de posse, a bancada negra da Câmara Municipal de Porto Alegre, filiada ao PSOL, ficou sentada durante a execução do Hino do Rio Grande do Sul alegando que sua letra teria conotação racista na estrofe: “Povo que não tem virtude, acaba por ser escravo”.
Para esses vereadores, esse trecho do hino legitimaria um processo de destruição da humanidade do povo negro e significaria: “o nosso povo negro não tem virtudes, por isso foi escravizado”. Portanto, na visão desses vereadores, o Hino do Rio Grande do Sul, amado pelos gaúchos, seria racista.
O Movimento Tradicionalista Gaúcho, através da sua Diretora Graziela Dutra, que é negra, refutou a acusação de que o hino seria racista, destacando a atuação dos Lanceiros Negros na Revolução e que esse tipo de debate tira o foco das grandes lutas identitárias prementes na sociedade.
O historiador Ivo Bittencourt também discordou da imputação de racismo, destacando que os acusadores não levaram em consideração o significado da palavra “escravo”: “O Hino Rio-grandense valoriza o cultivo de princípios virtuosos para que um povo se mantenha em liberdade, através da continuidade da capacidade de decidir segundo seus próprios valores. A utilização da palavra “escravo” está no sentido figurado, sendo o vício entendido como o oposto da virtude, como o fator escravizante”.
Está claro que o significado de se escravizar por falta de virtude remete à perda da liberdade no sentido mais amplo. No contexto farroupilha, queria dizer ser governado por um descendente de português, pela falta de liberdades republicanas e a submissão a tributos escorchantes que não levavam em conta os interesses locais.
Aliás, considerando que o hino se remete à guerra, escravizar significa ser rebaixado à condição servil pelo vencedor, o que na história aconteceu com todos os povos, como o tráfico árabe de caucasianos capturados em guerras. O Canato da Criméia ficou conhecido pelas excursões na Alemanha, Polônia e na própria Russa para captura de brancos para servirem de escravos no império Otomano e Oriente Médio. Havia mercados de escravos caucasianos na Costa Bérbere (Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia) comandados por otomanos.
O episódio resume o velho vício da esquerda brasileira de problematizar questões periféricas pra comandar narrativas inconsistentes. Aqui há o inusitado encontro da esquerda com a direita, pois a problematização do Hino é nada mais, nada menos, que a nova mamadeira de piroca utilizada pelo Bolsonarismo para apavorar as pensionistas filhas de militares do grupo do zap.
Em comum entre ambos os polos está a preguiça. É que na medida em que se debate o hino, todas as questões reais envolvendo identidade de minorias passam ao largo enquanto os dândis bem-intencionados alimentam suas teses morféticas, assim como é mais fácil debater mamadeiras de piroca do que o sistema educacional brasileiro.
Se atreva a dizer algo contra isso e tenha certeza de ser chamado de fantoche da GloboLixo pelos bolsonaristas, e racista/fascista pelos esquerdistas, pois, como a nenhum dos dois escapa o oco das suas ponderações, então resta mirar no mensageiro ao invés da mensagem.
O que mais surpreende nessa problematização, é que as hipotéticas vítimas do problema raramente identificam naquilo um problema, então é como se um terceiro viesse lhe convencer onde o seu sapato aperta apesar de você ter certeza que ele é confortável. A esquerda é useira e vezeira de se outorgar o título de mediadora da realidade, bem instalada no alto de suas Torres de Marfim, em relação às pessoas que vivem na realidade. Os gaúchos amam seu hino e não o consideram racista, mas, os Escolhidos, vieram nos comunicar que nossa percepção está errada e, se disser o contrário, automaticamente você se revelará um maldito racista desumanizando negros com seu espírito de porco fascista.
Como diz minha mãe, mamadeiras de piroca e problematizadores de hino que vão carpir um lote!
Foto da Capa: Joaquim José Medanha / Wikipedia