Eu ia publicar no Facebook e no Instagram: “Como tem ignorantes que adoram indicar livros nas redes sociais!”. E, logo depois, no mesmo post, mas com letras diferentes, acrescentaria: “Se você quiser, posso indicar alguns livros sobre o tema…”
Mas me controlei. Alguns achariam engraçado, mas talvez a maioria não entendesse a piada.
Logo começariam os xingamentos.
– Você também é um ignorante que quer indicar livros!
De nada adiantaria eu dizer que essa é justamente a piada.
Até há pouco tempo, em um dos meus perfis em redes sociais, estava algo mais ou menos assim: “Sou um homem inteligente, culto, modesto e perfeito, que não erra numca”.
Volta e meia vinha uma pancada:
– Perfeito, coisa nenhuma! Tanto que você errou. Nunca é com “n”!
Eu até que tentava explicar:
– Sim, esse é o humor. Disse que não erro e escrevi errado, propositalmente com “m”, a palavra nunca.
Mas só piorava a situação:
– Além de tudo, você é mentiroso. Deveria admitir que digitou errado. Ou talvez você nem saiba escrever direito. Nem mesmo culto você é…
Às vezes, a crítica era mais ampla:
– Se você fosse de fato modesto, não diria que é perfeito. Sua frase é contraditória!
Algumas vezes, a conversa acabava em acusações: “fascista”, “comunista”, “petista”.
Adotei uma resposta padrão, que usava de tempos em tempos como último recurso:
– Desculpe-me. Quando a gente procura fazer humor e o interlocutor não compreende, geralmente é porque o autor não foi competente em utilizar as palavras certas, o tom correto ou mesmo porque foi infeliz na escolha da ideia. Em algumas poucas vezes, porém, a culpa é do interlocutor, que não tem vocabulário, inteligência ou mesmo bom astral em sua vida para compreender as nuances de um texto bem-humorado. Mas devemos estar falando sobre o primeiro caso. Por isso, mais uma vez, peço que me desculpes.
Aos poucos, porém, adotei o deixa pra lá. E parei de responder.
Depois, achei melhor mudar o perfil.
Aos 61 anos (tenho 62), já estava chegando na maturidade e talvez fosse hora de colocar algo mais sóbrio sobre mim.
A falta de compreensão com o humor, tão presente nas redes antissociais de hoje, não é novidade.
Na década de 90, eu havia montado em São Paulo, no bairro do Sumaré, um Espaço Cultural chamado Aimberê. Foi o primeiro lugar do País a oferecer um curso de Danças Indígenas, que idealizei ao lado de um notável pensador, escritor e hoje ativista ambiental, Kaká Werá Jecupé. Havia também cursos de Fotografia, História da Ópera, Criação de Máscaras e Dança de Salão, entre outros.
Uma jornalista amiga, que escrevia para a “Marie Claire”, telefonou-me ansiosa e disse que precisava muito de alguém que desse uma entrevista para fechar uma matéria com opiniões masculinas sobre relacionamento. Dei a entrevista e, semanas depois, apareci em uma matéria sobre “Os homens jovens e solteiros mais interessantes do País”.
Fiquei horrorizado. Em momento algum soube que a reportagem teria esse cunho. Além disso, eu não tinha o perfil dos outros personagens da matéria, quase todos empresários bem-sucedidos. Eu era sim solteiro e “disponível”, mas não tinha dinheiro, devia no banco, não tinha casa própria e meu carro era um fusca amassado, que tinha o piso furado.
Para andar com ele pelas ruas de Sampa nos dias de chuva, eu colocava um pedaço de madeira no assoalho, o que fez meus amigos mais próximos me apelidarem de Fred.
Tanto o Espaço Aimberê quanto a Gontof Comunicação tinham menos de um ano. As duas, assim como meu fusquinha, andavam mal das “pernas”.
A matéria foi lida por uma pauteira da Silvia Poppovic, na TV Bandeirantes, e lá fui eu participar do programa, mesmo incomodado com o tema.
Se não gostei do conteúdo da revista, por que fui também à televisão? Ora, seria uma chance para, talvez, citar meu espaço cultural e, também, fazer contatos para a minha jovem assessoria de imprensa…
Uma hora a Sílvia perguntou-me:
– Você é feliz?
Respondi:
– Claro que sim!
E ela:
– Por quê?
– Ora, porque tenho as três coisas que um homem mais deseja: tenho muito dinheiro; tenho muitas mulheres e, principalmente, acima de tudo, tenho muita, muitíssima imaginação…
Saí orgulhoso da minha estreia na televisão. Fui irônico, engraçado e não deixei transparecer minha tensão por conviver desde sempre com um distúrbio de fala (disfemia), conhecido popularmente como gagueira, e estar ao vivo, diante de milhares de telespectadores.
Ao chegar em casa, que era também a Gontof e o Espaço Cultural Aimberê, vi que a secretária eletrônica piscava incessantemente. Eram muitas as mensagens! Abri uma cerveja e sentei-me para saborear o que diziam sobre a minha performance.
Havia, de fato, vários elogios do tipo “só você!”, “dei muita risada”, “sempre criativo”, “surpreendeste todo mundo”, “como você foi natural”.
Mas ao menos metade das mensagens dizia: “Você foi arrogante demais!”; “Nossa, que exibido!”; “Essas mulheres com quem você sai não vão te pressionar? Elas sabem que tu tens várias ao mesmo tempo? Não vão se afastar de ti?”; “Não devias ter contado que tens muito dinheiro. É perigoso. Tu podes ser sequestrado…”
Essa última foi a que mais me preocupou. Se a metade dos meus amigos e parentes não compreendeu, imagina as pessoas em geral.
Por alguns meses, saí preocupadíssimo com meu fusquinha amassado e com o piso detonado, temendo um sequestro. Vá que pensassem que era um disfarce ou que eu, que não tinha namorada, imóvel próprio e ainda por cima devia no banco, era um milionário excêntrico…
A falta de compreensão com o humor sempre existiu, mas o que mudou é que as pessoas se tornaram mais agressivas. As divisões políticas do País invadiram as redes. Muitas pessoas leem sempre raivosas e o distanciamento faz com que não possam ao menos perceber um sorriso irônico no rosto, um brilho no olhar, uma expressão amigável, que vem acompanhada pela comunicação ao vivo.
Não quero mudar meu jeito de agir ou de escrever. Mas, claro, adaptar-se é muitas vezes necessário. Alguns amigos sugeriram que eu comece a colocar ao lado das frases e textos um rostinho sorridente, um ou mais “rs” ou mesmo alguns “ha-ha-ha-has”…
Mas seria uma tristeza explicar o humor.
Não sei onde escutei – e aprendi – que piada explicada vira tese!
Ainda assim, tenho procurado ser um pouco mais contido na vida fora do computador.
Há poucos dias fui a um lançamento de livro e comecei a falar com um tipo que era, assim como eu, apaixonado pelo Chico Buarque.
Conversamos sobre as músicas do, em nossa opinião, maior compositor do país. Quais as mais geniais, as mais sensíveis, as mais líricas.
Ele indagou:
– Sei que é difícil, mas se você tiver que escolher uma entre todas, qual é a sua preferida?
Pensei em cantarolar:
– Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui…
Controlei-me.
Respirei fundo. E disse:
– A Praça!
Antes que ele reagisse, acrescentei, como se expusesse ao vivo os malditos rostinhos e expressões “rsrsrs” e “ha-ha-ha-has” do texto escrito:
– Estou brincando. Sei que o Chico fez a “A Banda”, que é linda, mas não é a minha preferida; e que “A Praça”, que é bem inferior, embora também alegre e bonita, foi composta pelo Carlos Imperial e interpretada pelo Ronnie Von.
Ele sorriu e começou a cantar, baixinho:
– Hoje eu acordei com saudades de você…
Cantarolei junto:
– Beijei aquela foto que você me ofertou. Sentei naquele banco da pracinha só porque foi lá que começou o nosso amor. Senti que os passarinhos todos me reconheceram e eles entenderam toda a minha solidão. Ficaram tão tristonhos que até emudeceram. Aí então eu fiz esta canção: a mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores e o mesmo jardim. Tudo é igual, mas estou triste, porque não tenho você perto de mim…
Pensei. Esse é o leitor que vou imaginar quando escrevo. Não nas redes, mas na coluna da Sler. De uma maneira geral, vou escrever o que penso e sinto. Oxalá as pessoas entendam e gostem.
Ele perguntou:
– Mas falando sério, qual é a música que você mais gosta do Chico?
Citei uma música que não é a melhor nem a mais genial do Chico, mas que hoje é a que mais me emociona: “Maninha”.
– Se lembra do futuro que a gente combinou, Que a gente combinou? Eu era tão criança e ainda sou; Querendo acreditar que o dia vai raiar, Só porque uma cantiga anunciou…”
Caro amigo da livraria, caro leitor, cara leitora aqui da “Sler”, são tantas pancadas, perdas e decepções na vida que luto muito, luto todo o tempo para seguir acreditando no que aprendi nas cantigas da infância, no que aprendi com “Flicts” de Ziraldo, com o humor judaico que me acompanha e ensina desde sempre: sim, a vida é boa e bela e acabará bem. Vale a pena acreditar e investir no amor e no humor.
É como compôs e cantou Roberto Carlos:
– Viver e não ter a vergonha de ser feliz,
Cantar a beleza de ser um eterno aprendiz
Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será,
Mas isso não impede que eu repita:
É bonita, é bonita e é bonita…
Foto da Capa: Gerada por IA
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