Quando meus pais queriam falar algo sem que eu e minha irmã entendessem invariavelmente falavam em iídiche, a língua com que se comunicavam com meus avós. O iídiche é um idioma derivado do alemão medieval salpicado com expressões em hebraico, alguma coisa do aramaico, registrando as andanças judaicas em seu vocabulário, com palavras que vem do russo, polonês e que vão mudando de acordo com a origem do falante.
Assim como o borscht, a popular sopa de beterraba, pode ser adocicado ou salgado de acordo com a origem de quem está cozinhando, as palavras vão sendo moldadas por diferentes sotaques e colorações locais. Na minha família, por exemplo, minha avó era chamada de bobe (pronuncia-se bóbe) enquanto na família da minha mulher, proveniente de outro ponto da Europa Oriental, a sua avó era a boba (pronuncia-se bóba).
O iídiche é a língua dos judeus ashkenazim, aqueles oriundos da Europa, principalmente da Europa Central e Oriental. O outro grande ramo do judaísmo por sua origem étnica são os sefaradim, descendentes daqueles que partiram da Espanha e Portugal no final do século XV e que se embrenharam pelas terras do então Império Otomano. A mais falada língua entre os sefaradim é o ladino, um mix de espanhol medieval e hebraico.
As multidões de judeus expulsas ou mortas pelo antissemitismo e a pobreza na Rússia czarista e os 6 milhões assassinados no genocídio nazista, destruíram a sociedade e a cultura que sustentavam o iídiche: uma Europa que era o lar de milhões de judeus.
Assim, o idioma foi sendo deixado de lado pelas novas gerações que preferiram se comunicar usando os idiomas locais e o hebraico, comum a todo povo judeu e falado no dia a dia no Estado de Israel. Meu pai sempre encontrava alguém para conversar em iídiche nas suas viagens, o que ele amava fazer. Ele sabia que o iídiche resiste e ainda é a língua mais falada nas comunidades ultraortodoxas, presentes em maior número nos EUA e Israel.
O iídiche era uma presença muito discreta nas artes visuais, no máximo alguém chamando o outro de “shmock”, um típico palavrão iídiche para alguém bobo e/ou desprezível e que foi incorporado pelo inglês dos EUA. Isso vem mudando com os cardápios gigantescos dos serviços de streaming e o Netflix tem diversos filmes e seriados em que o iídiche aparece bastante.
Maurício Stycer, crítico de TV da Folha de São Paulo, notou que a vida das comunidades judaicas ultraortodoxas vem sendo exploradas pela indústria audiovisual ao comentar a estreia do seriado Diamantes Brutos (foto da capa), thriller ambientado em Antuérpia, na Bélgica, com boa parte da ação ocorrendo na comunidade ultraortodoxa local atuante na Bolsa de Diamantes da cidade, com diálogos em várias línguas com forte presença do iídiche.
Outro lançamento da plataforma é a série “Casamento à Moda Judaica”, reality show que acompanha judeus e judias nos EUA e Israel que buscam os serviços de Aliza Ben Shalom, uma casamenteira, profissão tradicional nas comunidades judaicas e que ainda ganha dos algoritmos do Tinder e outros aplicativos de relacionamento na comunidade ortodoxa. O iídiche também está lá, junto com o hebraico e o inglês.
O crítico da Folha recomenda outros programas para quem deseja se inteirar do ambiente da ortodoxia judaica, começando pela série “Shtisel”. Nela, são narrados os conflitos de uma família religiosa que vive em Jerusalém, com destinos rígidos e aparentemente imutáveis, mas, nem por isso, isentos de questionamentos. O mérito de ambas as séries é não olhar para seus personagens como um olhar exótico ou distante, tampouco os julgando, mas dirige a eles um olhar humano, demasiado humano.
Outras obras, que irão focar o conflito de aspirações individuais com as regras comunitárias e religiosas e a fuga para o mundo secular. A minissérie “Nada Ortodoxa”, baseada em fatos reais, relata o trajeto de uma jovem mulher que sai de um casamento infeliz e do mundo de uma comunidade ultraortodoxa do Brooklyn para uma nova vida em Berlim. O documentário “One of Us” mostra o cotidiano de dois homens e uma mulher que abandonaram suas comunidades no Brooklyn, enquanto o reality show “Uma Vida Nada Ortodoxa” acompanha a vida de Julia Haart, uma designer de moda que sai de uma comunidade ultraortodoxa e atinge o estrelato profissional, levando junto três de seus filhos, o que não a poupa de conflitos com o caçula que permanece fiel ao estilo de vida religioso.
A lista não estaria completa sem o longa metragem “Menashe”, praticamente todo falado em iídiche e que trata de um conflito que marca presença nos outros dramas lembrados nessa coluna: é necessário casar após enviuvar? Qual é o tempo adequado para casar após perder o marido ou a esposa?
Stycer, ao falar de Diamantes Brutos e Shtisel, atribui seu sucesso à forma como os judeus ultraortodoxos são retratados na trama: “gente como a gente”.
Muitos dos diálogos dessas produções são travados em iídiche, o que lhes dá maior realismo e genuidade, o tempero que realça o sabor da receita. Foi-se o tempo em que gregos e troianos falavam inglês nas produções de tv e cinema, a autenticidade vale ouro nos dias de hoje.
O escritor Isaac Bashevis Singer, que escreveu toda sua obra em iídiche, declarou em seu discurso ao receber o Prêmio Nobel que a “língua de mártires e santos, sonhadores e cabalistas” continha tesouros que ainda não tinham sido revelados ao mundo. E advertiu: “O iídiche ainda não disse sua última palavra”.