“O que é um assaltante de banco comparado com um banqueiro?” – Bertolt Brecht
Uma lenda chinesa conta ter existido um tempo no qual o mundo dos humanos e o dos espelhos não estavam separados por nenhum obstáculo. Os homens podiam penetrar nos espelhos e os seres especulares conviver entre eles. Estes seres adotavam formas diversas, às vezes se agitavam, outras se acalmavam, porém em geral eram criativos e até divertidos. Inesperadamente, certa noite invadiram o mundo e sua caótica imprevisibilidade produziu um grande e generalizado pânico. Na manhã seguinte, temerosa, a população acorreu ao palácio do Imperador que era dotado de mágicas virtudes. Imediatamente o soberano subjugou os perturbadores seres confinando-os atrás dos espelhos onde deveriam viver para sempre e também criou um muro virtual, porém intransponível. Além disso, aproveitando a capacidade dos seres especulares em adquirir as mais estranhas formas, condenou-os a repetir por imitação todos os movimentos de nosso mundo. Daí para diante, careceriam de identidade e nada fariam por eles mesmos. Assim, se um humano se colocasse diante de um espelho e levantasse um braço, sempre do outro lado haveria alguém que devolvesse o gesto e imitasse a figura deste. Atrás dos espelhos, ficariam eternamente aprisionados, condenados a nos copiar e a se comportar de forma absolutamente previsível.
Os economistas neoliberais tiveram ideias semelhantes. Tentaram encerrar em um mundo de cristal as imprevisibilidades da economia capitalista ou, como diz, L. G. Belluzzo, “quiseram pensar o mercado por uma lógica incontrolável”.
A lembrança da depressão da década de trinta estava fresca na memória neoliberal. Esperando confiná-la “atrás do espelho”, em Breton Woods, 1944, estabeleceram as regras comerciais e financeiras entre os países mais industrializados do mundo com a obrigação de cada país adotar uma política monetária que mantivesse suas moedas indexadas ao dólar e este ao ouro. Assim, os idealizadores de Breton Woods favoreceram um sistema que se baseava na ação reguladora da “mão invisível do mercado” e, ao mesmo tempo, com um mínimo de barreiras ao fluxo de capitais privados A visão dos EUA do mundo pós-guerra era a de um comércio livre que implicava tarifas baixas e uma balança comercial favorável ao sistema capitalista. Diante das pressões na demanda global de ouro, Nixon, em 1971, impositivamente, cancelou a conversibilidade direta do dólar ao nobre metal. A partir daí, notas (falsas) de cem dólares passaram a comprar o mundo. Então, o enorme aumento de capital não controlado e a abolição das estruturas reguladoras exerceram um impacto de grande escala sobre a economia global. Assim chegamos à uma situação que, como diz Joseph Stiglitz, “fomos envolvidos por uma mistura tóxica de interesses especiais, políticas econômicas mal orientadas e ideologias direitistas que produziram a atual crise global” e, como na lenda chinesa, vimos os irrequietos e imprevisíveis seres especulares invadirem nosso mundo e, como não dispomos mais de um Imperador detentor de artes mágicas, realmente ninguém sabe o que fazer.
Mas alguém, como Michael Moore, sabe o que dizer: “Fomos vítimas de um gigantesco roubo planejado e executado por banqueiros e políticos neoliberais”. Agora não há ações do Estado que consigam conter o atual tsunami financeiro que está a destruir as economias de quase todos os países do mundo.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
Foto da Capa: Freepik AI-Generated
Leia também: O carcamano fidalgo que resgatou uma princesa do lixo, de Fernando Neubarth.