Perambulando em NY, fui fisgado por uma loja de roupas vintage: ombreiras, jaquetas jeans, calças legging, vestidos balonê, casacos com aba de pelinho do Top Gun, tudo absolutamente familiar para quem nasceu no começo dos anos 70.
Em destaque, estava ele, soberano sobre uma coluna dórica, recebendo iluminação dedicada: um All Star vermelho de cano alto e cadarço branco!
Caminhei zumbificado até aquele orgasmo estético, com indiscreta soberba de tê-lo calçado lá no início, praticamente um Neil Armstrong encontrando a Apolo 11 em uma loja de penhores em Las Vegas: “Um pequeno passo para um homem, um salto gigante para a humanidade”.
O sonho acabou quando reparei o preço absurdamente caro do All Star dos meus sonhos!
Então, de repente, lá estava eu em 1984, na minha velha casa da Glória em Porto Alegre, olhando o antepassado daquele espécime, dormindo atrás da porta que dava para o pátio, só que, ao invés de vermelho de cano alto, branco de cano baixo.
Mesmo na recordação, quase fui nocauteado pelo seu cheiro azedo de chulé, uma mescla de cachorro molhado e enxofre (por isso o castigo de dormir no pátio!).
Mas devastador mesmo foi lembrar das bolhas nos pés, daquele acavalamento que fundiu meu mindinho ao anelar e moldou minha unha em formato de cimitarra.
[VOZES DA MINHA CABEÇA: – Ah, mas então o All Star era ruim?]
Não! Ruim mesmo era o Kichute!
Sim, o Kichute, aquele besouro negro com travas de borracha e cadarço grande o suficiente para laçar um bisão selvagem. No Kichute, o chulé vinha de fábrica, inicialmente escondido naquele cheiro de borracha que devia dar barato se inalado em local fechado (infelizmente, a ingenuidade da época me privou da viagem “kichutérgica”).
O Kichute era a chuteira de quem não tinha dinheiro para comprar uma chuteira, por isso as altas travas de borracha aleatoriamente colocadas na sola. Essas travas tornavam a caminhada no plano um show de equilíbrio e na grama, um convite para uma lesão no tornozelo.
[VOZES DA MINHA CABEÇA: – Ok, tudo bem, ruim mesmo então era o Kichute!]
Negativo! Ruim mesmo era a Conga!
O chulé da Conga foi desenvolvido em laboratório durante a guerra do Vietnã: entre ele e o Napalm, os norte-americanos ficaram com o segundo que causava menos danos. Se bem estudado, se descobrirá que todos os problemas de deambulação da minha geração vieram da tal de Conga.
No preço da Conga estava inclusa a humilhação!
Sim, a humilhação!
Era chegar no colégio pra começar aquela maldita música: “Conga, é pra guri bagaceiro, que o pai não tem dinheiro, Conga”. Tinha outra ainda pior: “Conga, para quem não tem dinheiro, vagabundo, maconheiro. Conga, é tão fácil de rasgar!”
Naquele colégio público do final dos 70 e começo dos 80, crianças pobres chamavam de pobre quem usava Conga, não raro do alto das suas Havaianas de presilha recauchutada por um prego.
[VOZES DA MINHA CABEÇA: – Tá bem, está claro! Só tinha tênis bosta nos anos 80!]
Nada! Em 1985, conheci o Marathon azul com faixas que brilhavam no escuro, que, junto com um abrigo arco-íris, transformava qualquer magrelo espinhento no Patrick Swayze.
Mas no combo do Marathon veio a decepção: meus pais acharam um despautério gastar tanto dinheiro com um tênis, mostrando a absoluta falta de empatia com as necessidades básicas de um adolescente que ia no Sunday do Teresópolis Tênis Clube.
[VOZES DA MINHA CABEÇA: -Que vida bosta, hein?!]
Não mesmo!
Em 1987, tudo mudou: ganhei um Nike de basquete, branco, de couro e com cano alto. Eu e Robert Smith amarrávamos ele apenas nos primeiros furos, para as laterais do cano alto ficarem abanando. Michael Fox me imitou em De Volta para o Futuro. Depois do dia inteiro no colégio, o valente participava da coreografia do Boys Don´t Cry no Ocidente [1].
Para acompanhar aquele Deus dos Pisantes, comprei um smoking de segunda mão na loja de roupas usadas perto do Julinho [2] (sim – “loja de roupa usada” – porque brechó é a sua gourmetização mais recente). Daí o Nike, o Smoking e, inclusive, eu, fazíamos sucesso jogando sinuca no Bar Lola na Osvaldo Aranha.
Veio a faculdade e traí meus velhos companheiros da forma mais vil possível: comprei um sapato social na C&A, depois na Renner, Aduana e, adiante, estava esnobe comprando na Homem.
Mas, além de traíra e vil, ainda revelei minha face mais sórdida comprando um sapatênis nos últimas anos da faculdade.
E a vida seguiu.
Durante a pandemia, comprei um tênis caro, com amortecimento, fibras que não deixam o pé suar, bom para caminhadas e academia. O negócio tinha tanta tecnologia, que fiquei me perguntando se o vendedor havia feito uma faculdade para transitar em tamanha complexidade.
*“Filho de Puta Pobre”: Adj. Superl. Usado pela minha mãe para designar quem compra uma coisa e sai usando (Dicionário Lá de Casa da Língua Portuguesa!).
Apesar da cândida lembrança materna, desovei os tênis velhos na loja, calcei aquela maravilha e surgi pleno no shopping, pisando em nuvens, gingando no amortecimento de gel, quase um Eminem Farroupilha.
Foi chegar em casa e tirar os tênis que uma DR explodiu com pés dizendo: – Seu merda, por que demorou tanto para comprar esses tênis???
Argumentos não me faltavam para enfrentar de cabeça erguida aqueles pés enfurecidos. Podia falar da falta de dinheiro, do atraso tecnológico, de um Brasil com a economia fechada em que as novidades vinham dos USA ou do Paraguai, mas simplesmente sorri.
Sorri complacente encarando as unhas de cimitarra, porque pés não são como elefantes que nunca esquecem.
Então, não lembravam do dia em que caminhei de costas no mar de Capão da Canoa ao lado do pai para ver a trilha de travas do Kichute sulcadas na areia molhada; nem de quando esqueci a Conga na barraca azul no Guaíba Country Club e voltei com os pés sapecados de rosetas nas costas da mãe; tampouco do All Star branco me levando pro primeiro beijo naquela tarde preguiçosa da Glória [3].
Os irascíveis pés nem lembraram do Nike embolado com as rasteirinhas da guria mais legal do bairro, cueca e calcinha, camiseta e sutiã, numa harmoniosa bagunça do lado da cama de solteiro no Cristal [4] depois do colégio…
Aliás, pra que amortecimento de gel em um tempo em que a vida era mais leve?
…
[1] Icônico bar, casa de shows e danceteria localizado na Avenida Osvaldo Aranha em Porto Alegre.
[2] Júlio de Castilhos, colégio público de Porto Alegre para os não familiarizados.
[3] Bairro de Porto Alegre.
[4] Bairro de Porto Alegre.
…
*Texto originalmente publicado aqui em 24 de outubro de 2022