A “Festa dos Deuses“, de 1635, é uma obra de Jan Harmensz Van Bijlert. Nela, os deuses olímpicos estão celebrando o casamento de Tétis e Peleu, com Apolo coroado no centro da mesa e Dionísio ou Baco, deus das festas, da alegria e do teatro, em primeiro plano. Ele é aquele que come as uvas.
Em 1989, Madonna lançou a música e o vídeo Like a Prayer. Transgressora, a cantora usou iconografia religiosa, beijou um santo negro e dançou em frente de cruzes pegando fogo. O Papa João Paulo II excomungou a cantora e, com certeza, muitos devem ter pedido seu exorcismo.
O que o quadro de Van Bijlert e a música de Madonna tem em comum? A polêmica que causaram: uma direta e outra indiretamente. Além disso, ambos escancaram o preconceito e o pseudopuritanismo de uma sociedade adoentada.
O quadro que serviu de referência para uma das cenas da cerimônia de abertura das Olimpíadas foi tomado por outro e fez-se a confusão. Se falava em “A Última Ceia” de Leonardo Da Vinci, quando a representação era de uma cena pagã, com deuses gregos, retratada na obra de Van Bijlert e denominada “Festa dos Deuses”.
Uma enxurrada de críticas tomou conta das redes sociais. A partir daí foi um tal de crucificar o governo francês, a comissão orgnizadora, as drag queens que participaram da cena e todos os que de alguma forma tinham relação com o acontecido. Só não se preocuparam em saber se a informação que caiu na rede era verdadeira. Alguém disse “A Última Ceia” e ponto, ninguém contestou.
Ora bem, recorremos aqui ao escritor Humberto Eco quando afirma que “A obra é aberta, não escancarada” ao argumentar que uma obra de arte ou literatura não possui um significado fixo e definitivo, mas está aberta a múltiplas interpretações pelos leitores ou espectadores. É certo que uma obra sempre possui uma estrutura, um contexto e algumas intenções do autor que podem vir a delimitar e orientar as possíveis interpretações. Teoricamente, as interpretações podem ser explicadas e pode até ter havido uma intencionalidade por parte do criador em gerar essa dualidade da cena. Contudo, o que se viu a partir daí vai muito além de qualquer explicação acadêmica.
Ficou claro que o que causou toda a polêmica não foi o “desrespeito” pela obra que pensavam que era, e não era. O que gerou a fúria dos guardiões dos bons costumes foi a quantidade de drag queens fazendo carão ao lado de um personagem que julgavam ser Jesus. O que ficou claro é que ali foi servido um banquete para uma sociedade intolerante, desinformada e afeita às polêmicas das redes.
Assim foi também com Like a Prayer. O vídeo incomodou não pelas cruzes ardendo, pela cena de estupro ou pelo beijo sagrado/profano, e sim pela artista ter querido dar voz para grupos minorizados pela sociedade e por ter um santo negro. Como assim, negro?
Conclusão. Somos e continuamos sendo uma sociedade racista e preconceituosa. De tudo isso prefiro a frase da sempre irreverente Madonna: “O artista está aqui para tirar a paz”. Só para constar, depois do episódio de Like a Prayer ela ainda foi excomungada mais duas outras vezes.
Jan Harmensz Van Bijlert te prepara, que aí vem luta! Ainda vão te acusar de ter copiado, e distorcido, Da Vinci. Cenas dos próximos capítulos.
Foto da Capa: Reprodução da obra A Festa dos Deuses, de Jan Harmensz Van Bijlert
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