Por uma razão desconhecida, vários homens estavam aprisionados numa caverna completamente iluminada pela razão crítica. Ali, todos eram capazes de operar a distinção entre a realidade e seu simulacro, já tinham ultrapassado o senso comum e se achavam… “livres”!
Certo dia, por uma razão também desconhecida, um daqueles homens conseguiu se libertar de suas amarras críticas e partiu para o exterior da caverna. Lá fora, ele teve o vislumbre de um mundo novo, também conhecido como o Jardim dos Resultados! Passeou longamente pelo Jardim, onde viu tecnologias de ponta – em cujas pontas ele quase se feriu -, viu privatizações, terceirizações, precarizações, licitações suspeitas, obras inacabadas e, entre as obras “acabadas”, viu as ruínas do que antigamente chamavam de Serviço Público (uma expressão que provocava riso nos jovens); encontrou uma envelhecida personagem chamada “Ética” lamentando o fato de que deixara de ser consultada; viu uma senhora de nome estranho – uma tal de “cultura erudita” – desolada pelo abandono; viu choques de gestão, governança corporativa, monitoramentos de produtividade e, numa esquina distante, viu os escombros de algo que ele conhecia da caverna: uma biblioteca! E entre os livros destruídos, uma página perdida de Platão.
Deslumbrado, voltou para a caverna para anunciar a Boa Nova aos companheiros de infortúnio crítico: “- Meus caros, acabo de chegar do futuro e ele funciona! Não se enganem: não há mais diferença entre ilusão e realidade; o ter vale mais do que o ser; toda moral é moral do prazer; há meritocracias até nas relações amorosas; as pessoas têm mais de 20.000 amigos… Mas o que mais me chamou a atenção foi a nova forma que a escola assumiu! E passou então a descrevê-la. “- Não existem mais alunos, e sim clientes; não há mais professores, mas orientadores profissionais; não há mais ciências humanas, mas práticas instrumentais; os clientes ficam em casa recebendo aulas por celulares; ninguém nunca viu ninguém, mas todos são amigos e se conhecem; os pais nunca foram à escola, que não existe na ‘realidade’. Aliás, a própria ideia de realidade é um conceito ideológico. Conversei com um daqueles clientes por um celular que me emprestaram. Perguntei o que ele queria ser quando crescesse! Respondeu-me que ‘ser’ era um conceito ideológico, e crescer não tinha sentido: ninguém mais cresce, apenas se adapta”.
A duras penas, tentou convencer seus amigos de caverna crítica de que todos eles eram antiquados e ideológicos. Sem conseguir convencê-los, deletou-os todos!
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Foto da Capa: Gerada por IA