Uma das leituras fundamentais – e uma das mais bem-escritas, também, o que tem lá sua importância – para começar a entender, ainda que de viés, um pouco da mentalidade dos atuais “tomadores da pílula vermelha” – embora essa expressão específica não seja usada na obra para definir essa subcultura em particular porque ainda não havia atingido ampla circulação na época – é O Jogo: Penetrando na Sociedade Secreta dos Artistas da Sedução, misto de ensaio, memória e grande reportagem publicado pelo jornalista americano Neil Strauss em 2006 nos EUA e editado no Brasil em 2006 (não obstante o nome e o subtítulo já quilométrico do livro, a edição nacional adicionou um subsubtítulo: A Bíblia da Sedução).
Até o início dos anos 2000, Strauss era um jornalista de música que escrevia resenhas e acompanhava turnês de bandas para publicações como Rolling Stone ou The New York Times – os bastidores dessas entrevistas e o refugo, digamos, do material principal, ou seja, aqueles trechos que foram cortados das matérias editadas, formariam a base para outro de seus livros, Fama e Loucura, também publicado no Brasil, mas essa é uma publicação posterior lançada quando Strauss já tinha cacife o bastante até mesmo para virar best-seller com um livro reunindo as partes cortadas de suas principais entrevistas. Não nos adiantemos.
Virada na carreira
Até os primeiros anos do século XXI, Strauss era o jornalista padrão: inteligente, metido a sabichão, próximo o bastante de pessoas incomuns para ter plena consciência de quão comum ele era, apegado à qualidade de seu texto como talvez a única qualidade de fato de sua existência infeliz. Até que, cansado de ser um zé mané mesmo tendo cavado um nome para si em duas das maiores publicações impressas americanas, em uma época em que publicações impressas ainda tinham alguma relevância, ele frequentou uma “oficina de sedução” ministrada por um “pick-up artist” americano chamado Erik von Markovik, um mágico de palco que fazia exibições como “mentalista” com o pseudônimo Mystery. A certa altura dos anos 1990, Mistery basicamente passou a empregar as mesmas ferramentas de percepção de linguagem corporal e manipulação mental que o faziam parecer um “leitor de mentes” para “pegar mulher na balada”, digamos assim. Para ele, ao menos, a coisa deu certo o bastante para que começasse a ganhar dinheiro ensinando a homens inseguros métodos de aproximação com o sexo oposto. Foi aí que ele e Strauss se conheceram – e, no relato algo fantasioso que faz da coisa toda em O Jogo, o jornalista diz que Mistery o saudou como “um de nós” e logo Strauss, com o pseudônimo algo ridículo de “O Estilo” (“Style” no original, uma brincadeira com seu sobrenome), estava metido até o pescoço na então ainda subterrânea tribo dos “pick-up artists” – um sinal de o quanto esse tipo de coisa ainda era obscura está no próprio fato de não haver naquela época ainda um consenso de como traduzir o conceito em português. A edição brasileira do livro em 2008 usa “artistas da sedução” em vez do mais literal “artista da pegação” que se tornaria meio que padrão na década seguinte.
O Jogo
O Jogo é o relato dos anos que Strauss viveu no meio dessa subcultura entre 2001 e 2005, mais ou menos (não, eu não tenho o livro aqui pra consultar, li há muitos anos e já o passei adiante nem me lembro pra quem, logo, desculpem pequenas incongruências cometidas pela minha memória). Mais do que relatar sua experiência, Strauss também documenta o nascimento desse fenômeno e entrevista alguns de seus então principais expoentes – caras como o próprio Mistery ou outros que também compartilhavam com ele o uso de recursos de manipulação mental como mote de shows de entretenimento, como os hipnotizadores Steve P. e Rasputin. Strauss também conversa com o decano da categoria, Ross Jeffries, que dizia ter sido o modelo no qual o diretor Paul Thomas Anderson se inspirou para criar o personagem do “guru masculinista” vivido por Tom Cruise em Magnólia – em uma cena particularmente engraçada do livro, Strauss entrevista o próprio Tom Cruise, que nega a inspiração com a veemência algo perturbadora do que o astro-rei da Cientologia é capaz.
Mas afinal, qual é o “jogo”? Parte das técnicas que Strauss diz ter aprendido estão apresentadas no livro. A criação de frases “quebra-gelo” de efeito compostas e decoradas obsessivamente até parecerem espontâneas é uma delas. Havia também um aceno à então recentemente denominada cultura “metrossexual”: roupas elegantes, estilo pessoal sofisticado mesmo quando chamativo etc. Até aí nada de novo, Ovídio dava uns conselhos meio parecidos em seu A Arte de Amar, que é do primeiro século da Era Comum, mas há mais. Como tem ficado claro também aqui no Brasil com a popularidade recente dos exemplares tupiniquins da categoria, os artistas da pegação veem a dinâmica entre os sexos pelas lentes de sua peculiar noção de luta pelo poder.
Outra das ferramentas básicas no kit dos “gurus da pegação” é o que eles próprios chamam de “neg”, um “elogio negativo” composto especialmente para desestabilizar as mulheres muito bonitas chamando atenção para pontos supostamente negativos de sua aparência e/ou personalidade de modo a “baixar a bola” da mulher mais inacessível – um exemplo de que me lembro no livro era mais ou menos assim: “ei, normalmente pessoas com dentes como os seus não conseguem ter um sorriso bonito, mas em você eles ficam muito bem”. Mostrando os laços umbilicais que ligam toda essa cultura desde o início a uma mentalidade capitalista selvagem, se uma mulher está “muito bem cotada”, fazem parte do arsenal do “artista” métodos para “desvalorizá-la”: se ela estiver em grupo, interaja com todos menos com ela. Se possível, isole-a dos demais, etc.. Esse arsenal mudou tão pouco nos últimos anos que ainda é usado por essa onda retardatária de “artistas da pegação” brasileira hoje tristemente em evidência.
Se há uma espécie de “arco narrativo” em O Jogo, é o percorrido pelo próprio Strauss ao longo dos anos em que participou da tribo (parte dos “artistas”, ele incluso, chegaram a se mudar para uma mesma casa onde Mistery delirava com a ideia de “criar uma comunidade” de artistas da sedução). Naqueles anos em que não havia WhatsApp (aliás, não havia nem aplicativos de celular como os conhecemos hoje), o grupo se congregava, trocava ideias e até mesmo sugestões de frases e “negs” em um fórum online. E é por meio desse fórum que Strauss, que se achava um sujeito boa praça que simplesmente estava tentando aprimorar sua autoestima usando um tipo de conhecimento que o aproximaria de mulheres que de outro modo não olhariam para ele, vai encontrando nesses fóruns exemplares de “artistas da pegação” cada vez mais novos e agressivos, motivados não por uma ideia de aproximação com o sexo feminino, mas de ressentimento e imposição da vontade.
Mostrando que talvez ele soubesse desde o início o quanto havia de potencialmente tóxico naquela subcultura, Strauss encerra o livro não com um ménage (embora haja um no livro), mas com o momento em que, desiludido com a “cena” a que pertencia, descobre uma verdadeira paixão e inicia um relacionamento monogâmico com a musicista Lisa Leveridge, guitarrista da então banda de apoio da doidona Courtney Love – de quem Strauss havia se tornado amigo. Ao mesmo tempo, Strauss constrói sua narrativa inteira como se não houvesse nada de estranho no “movimento” em seu início, apenas ele havia sido desvirtuado por um novo tipo de “artista” com mais agressividade e menos escrúpulos.
Red Pill: a origem
Há algumas ironias nisso. A maior delas é que, escrevendo um livro sobre como “entrou e saiu” da cultura da pegação, na qual enxergava uma irremediável decadência, Strauss acabou por popularizar o fenômeno de tal modo que colocou os “pick-up artists” no mapa da cultura pop. Mistery lançou seu próprio livro detalhando seu “método” – prefaciado por Strauss – e logo no ano seguinte ao lançamento de O Jogo fechou um contrato para apresentar um reality show no canal VH1 no qual treinava homens a conquistar mulheres com seus métodos. Outra delas é que, embora um par de anos mais tarde Strauss tenha escrito uma continuação de O Jogo baseado nos desafios que um cara com esse tipo de bagagem tinha para manter um relacionamento, um tempo depois, já separado, Strauss abandonaria as reticências que havia apresentado ao “jogo” e, talvez interessado em faturar com a popularidade da tendência que havia ajudado a criar, lançou um livro mais parecido com um “manual de técnicas” para pegar mulher.
Parte dessa onda chegou já no fim dos anos 2000 ao Brasil – algo que se comprova pela própria edição do livro de Strauss por aqui. Quando a vaga chega a nossas praias de homens intimidados pela mulher contemporânea, ela já pinta sem nenhum verniz de sutileza como o que Strauss tentava se convencer que existia no início. Já em 2014, em plena emergência da hoje chamada “quarta onda do feminismo”, um suíço chamado Julien Blanc chegou a provocar alguma comoção nacional ao ser anunciado que daria alguns cursos e oficinas em Florianópolis, e uma petição online gigantesca foi levantada solicitando a negação de seu visto de entrada no Brasil – Blanc não ficava apenas nos “negs” e nas manipulações neurolinguísticas, mas era um adepto do contato físico violento e não solicitado, inclusive agarrar mulheres pelo cabelo e pelo pescoço.
Não admira que, mesmo que com o atraso habitual com que essas coisas se disseminam no Brasil, tenhamos hoje os exemplares nacionais – mais do que famosos, infames – que também aplicam na receita do “jogo” uns métodos mais toscos e truculentos. Vocês sabem de quem estou falando, mas eu não vou citar o nome do cidadão do Campari lá para não dar público para figuras desse calibre. Não que eu tenha um grande público, também, mas vocês entenderam o princípio.
Uma das coisas que o careca da bebida com gosto de Limpol representa é um cruzamento contemporâneo um pouco mais sinistro entre essa subcultura dos “artistas da pegação” e outros movimentos masculinistas das últimas duas décadas que, incapazes de aceitar o mundo como é, um lugar em que eles são figuras tristemente comuns, botam na cabeça que há uma grande conspiração em jogo. Não são eles os medíocres, há uma conspiração de boicote. Não é que eles sejam meio toscos, são as mulheres que são interesseiras, portanto, a chave é ou fazer muito dinheiro ou enxergá-las como o inimigo e não considerá-las humanas, mas objetos a serem coletados ou presas a serem simbolicamente capturadas.
Essa vertente contemporânea alude frequentemente à “red pill”, a pílula vermelha com que Morpheus faz Neo, o escolhido, despertar da simulação ilusória da Matrix para um mundo mais brutal e árido no filme cult-clássico de 1999. Depois de despertado da sua ilusão no retorno a ela, consciente de sua natureza, Neo e os seus demais associados numa revolução contra as máquinas que escravizam a humanidade são capazes de proezas sobrenaturais. O que é irônico nessa vinculação é que uma das próprias diretoras de Matrix – agora não me lembro se Lana ou se Lilly – já declarou que Matrix, com sua realidade ilusória forçada e perseguição aos que deixam de participar da “simulação de normalidade”, era uma forma de ambas as irmãs, quando ainda atendiam por “os irmãos”, lidarem com as questões complexas de sua identidade de gênero – e que culminariam na transição feita por ambas anos depois. Assim, a metáfora que deu força às Wachowski no seu processo de transição de gênero é a mesma em que se abraçam hoje hordas de masculinistas que veem uma conspiração antimasculina em cada esquina, mostrando que as relações entre o que a arte representa e o que ela inspira no mundo real são mais complexas do que se costuma apontar em discussão de Twitter.
O verdadeiro jogo
Na origem desse fenômeno está uma insegurança que é real, principalmente entre homens muito jovens: o da inadequação, da falta de pertencimento, da humilhação, questões que também fazem parte das imposições da sociedade machista patriarcal – e que sai curiosamente fortalecida por meio dessas ilusões com que jovens como esses tentam lidar com suas inseguranças. Não falo aqui dos coaches do assunto, que esses são picaretas mesmo, falo de quem cai no canto dessa sereia que ensina um pensamento tortuosamente tributário do iluminismo: “as relações não são complicadas, mulheres todas são iguais e todas reagem a um tipo de conhecimento que estamos vendendo a vocês em seminários e lives pagas a módicas prestações, deixe seu dinheiro aqui”.
Alguém aí poderia objetar que talvez não houvesse esse tanto de “artistas da pegação” se seus truques não dessem certo, e eu não sei se dão, mas tenho certeza de que mesmo se forem um completo fiasco, não faz diferença. A marca da sociedade contemporânea é a incerteza e a insegurança, então qualquer sujeito um pouco mais esperto que apareça com uma receita pronta de como lidar com determinadas frustrações e desesperos tende a arrebanhar público, como tem-se visto nesse bando de coaches de tudo que parece ter brotado da grama nos últimos anos.
O que esses sujeitos mostram, também é que são um problema de difícil solução. Alguém que acha que sabe tudo sempre vai aparecer para argumentar que não se deve dar palco para esse tipo de otário, e eu não acho que a estratégia deva ser tão peremptória. Mesmo ignorada pela ampla maioria, a cultura dos “artistas da pegação” já tem mais de duas décadas em atividade e não dá sinais de arrefecimento (quando até a moda “metrossexual” a que estava associada no início passou a essa altura). Deixados na sombra, claramente eles se proliferaram por seus próprios meios. A explosão de notícias recentes sobre a turba pode ajudar a arrebanhar novos adeptos? Pode. Ao mesmo tempo, talvez outra das estratégias recomendadas seja justamente o embate que ponha a nu o que está de fato em jogo nesse tipo de pensamento de dominação tosca à moda antiga. Pode dar palco? Pode. Atrair mais gente? Sim. Ao mesmo tempo, num país em que uma parcela da população parece estar disposta até mesmo a normalizar e relativizar qualquer coisa, da execução sem julgamento ao trabalho escravo, já passamos do ponto em que um tuíter ou um texto como este para meus sete leitores vão “disseminar o horror”.
Porque lidar com esse tipo de pensamento obscuro é o verdadeiro e mais difícil jogo – na casa do adversário, e sem estratégia garantida.
NEM TE CONTO Nº 5
Considerando o tema de hoje, resolvi trazer um conto que aborda sedução e farsa por uma perspectiva satírica extremamente masculina. E que também é uma obra de um mestre nacional do conto.
“CADERNINHO DE NOMES”, de Rubem Fonseca
Da coletânea Pequenas Criaturas (Edição original pela Companhia das Letras, em 2002. Relançamento pela Nova Fronteira em 2011)
O narrador sem nome em primeira pessoa é um sedutor compulsivo que, após se separar da esposa, passa a registrar em um caderno os nomes e as peculiaridades das mulheres com quem já foi para a cama. E esse é o tipo do hábito calhorda que pode gerar confusões ao menor descuido, como o narrador pode ou não vir a descobrir ao longo da história.
Conhecido por suas narrativas que anteciparam a degradação brutal da violenta sociedade brasileira, Fonseca exercita nesta história uma vertente pouco considerada em seu trabalho: o humor cafajeste, que, no caso desta história, tem como pano de fundo uma conclusão niilista e algo melancólica, mas nem por isso isenta de alguma verdade: de modo geral, homem não presta.