O advogado Oswaldo de Lia Pires (1918 – 2010/foto da capa), mais do que um profissional com carreira destacada no campo do Direito, tornou-se a certa altura do século XX um personagem pop. Aliás, quando Lia Pires começou a ganhar fama, em meados dos anos 1950, com direito a reportagem na revista O Cruzeiro, a de maior circulação no país, nem havia ainda essa expressão “figura pop”, mas seus métodos heterodoxos de atuação em sessões de júri se tornaram algo lendários, temas de causos e anedotas mil vezes recontados e cuja circulação extravasou o campo do Direito e ganhou ares de façanhas mitológicas entre a gente comum. Natural, aliás, uma vez que a esperteza e o triunfo dos artifícios intelectuais são tão frequentes na literatura e na cultura popular quanto as façanhas de força e valentia – numa corrente que vai do Pedro Malasartes da tradição ibérica até o Odisseu grego, a quem Homero apelida textualmente na Ilíada “o dos muitos artifícios” (polymetis) e “o de muitos expedientes” (polymechanos).
Hoje em dia não sei, mas ao menos até a minha geração era comum ouvir alguma história sobre a atuação de Lia Pires nas sessões de tribunal. Conta-se que em determinado júri, no qual defendia um réu que havia matado a tiro de espingarda um vizinho que o destratava todos os dias, ele abriu sua sustentação oral repetindo “Excelentíssimo senhor juiz” várias vezes até o magistrado perder a paciência e mandar ele ir direto ao ponto. Ao que o advogado arrematou: “Mas excelência, eu o tratei com o máximo respeito e o senhor já perdeu a paciência. Imagine o meu cliente ouvindo xingamentos na frente de sua porta todos os dias?” Em outra ocasião, monopolizou a atenção dos jurados ao gesticular com um charuto aceso do qual a cinza nunca caía – o truque é que havia um pedaço de arame dentro, e esse estratagema, possível naqueles tempos mais selvagens, hoje não teria sido usado, já que o fumo em recintos fechados é proibido.
Como eu disse, Lia Pires foi um personagem bastante popular até a minha geração, digamos, mas os mais novinhos têm uma chance de ter contato com parte de sua mitologia no romance mais recente publicado pela escritora Carol Bensimon, Diorama, uma história que intercala dois tempos narrativos. No primeiro, situado no presente, a jovem Cecília vive nos Estados Unidos, onde trabalha com taxidermia e na montagem de “dioramas”, representações empalhadas de animais em displays que simulam seus habitats naturais. O principal motivo pelo qual a jovem se afastou do Brasil mantendo pouco contato com a família por quase três décadas, é a narrativa contada na outra continuidade temporal: um rumoroso caso criminal ocorrido no fim dos anos 1980 no qual o pai de Cecília, o médico e político Raul Matzenbacher, é acusado de assassinar seu amigo e colega parlamentar João Carlos Satti, comunicador e radialista de grande audiência no Estado. Embora no tumultuado júri que se seguiu Matzenbacher tenha sido absolvido, Cecília permanece em dúvida porque, ainda criança, ouviu o pai chegar em casa num horário diferente daquele que ele e a esposa alegam, mantendo em aberto a possibilidade de ele ter sido o autor do crime. Cecília então, já adulta, se dedica a tentar remontar o caso para dar sentido às próprias lembranças e à relação para sempre comprometida com o pai.
Caso Daudt
Como já deduziram alguns de vocês, essa parte específica da narrativa é um retrato ficcionalizado do Caso Daudt, um crime real ocorrido em junho de 1988 no qual o deputado peemedebista José Antônio Daudt foi assassinado na frente de sua casa em Porto Alegre e as investigações da polícia apontaram o também deputado (pelo mesmo partido) Antônio Dexheimer como o possível autor. Dexheimer foi julgado em um processo que capturou a imaginação pública em 1990, e Lia Pires atuou como seu advogado e obteve a absolvição. É talvez um dos momentos mais lembrados da atuação do advogado. Algumas das estratégias teatrais usadas por Lia Pires no julgamento do caso incluíram pedir que se diminuísse a luz do plenário do Tribunal para desacreditar as declarações de uma testemunha de que teria conseguido reconhecer o réu à distância, à noite e com uma boina na cabeça.
Assim, obviamente Lia Pires também dá as caras no romance de Carol Bensimon, disfarçado na pessoa do personagem Souza Andrade:
“Diziam que ele era sem dúvida a pessoa certa para as horas erradas. Um homem massivo de idade indefinida, com a careca brilhante como uma superlua. (…) O homem era um dínamo da retórica, um modulador impecável entre a indignação e o afago. Muitos anos mais tarde, eu o imaginaria como uma espécie de figura simbólica, uma carta de tarô que anuncia destinos incontornáveis assim que é posta sobre a mesa. Outras vezes, eu o enxergava apenas como um pobre depositário do lodo da história do Brasil”.
Que fique claro aqui que eu não sou advogado nem especialista em Direito, mas eu sou um curioso e um bom ouvinte, e algo que já ouvi de mais de um advogado ao longo dos anos (incluindo minha brilhante companheira de vida, Fernanda Nasário) é que Lia Pires fazia esse tipo de coisa porque gostava de explorar uma modalidade de ação só possível durante as sessões de um júri: o convencimento por meio da emoção. Ao contrário de um juiz quando profere uma decisão em qualquer outro procedimento judicial, o jurado, esse sujeito comum sorteado entre um universo de pessoas não exclusivamente especializadas no Direito, como eu e muitos de vocês, não tem a obrigação de justificar o voto dado para compor o “placar” que absolve ou condena o réu. Basicamente, se estiver convencido da inocência ou da culpa do acusado, um jurado não precisa dizer o porquê, apenas responder aos quesitos formulados pelo juiz com sim ou não.
Logo, ao contrário de qualquer outro tipo de ação, em que a tecnicidade é essencial para a apresentação da defesa, no júri, modifica-se aquele mandamento daquela frase da moça que ganhou fama no YouTube há uns anos e você pode se dar bem tanto com “mais razão” quanto com “mais emoção”. Não é que valha tudo, mas encontram lugar em um júri coisas que não seriam aceitas noutros procedimentos porque a comoção dos jurados é um objetivo e a emoção é uma corda que o advogado pode querer tocar em defesa de seu cliente.
Entre aquele tempo e hoje, tornaram-se menos frequentes esses episódios performáticos, mas de modo algum eles foram extintos. Tivemos um exemplo recente no júri (atualmente anulado) dos réus no caso da Boate Kiss, em que uma das advogadas de um dos acusados leu ao júri uma carta “psicografada” por uma das vítimas e incluída em um livro escrito por encomenda de algumas das famílias.
A vítima à qual a carta era atribuída dizia no texto: “Pai e mãe, estimaria vê-los distante de quaisquer protestos que não me trarão de volta. Vamos lembrar que os responsáveis também têm famílias e não tiveram qualquer intenção na tragédia acontecida. Pensemos no fato como uma fatalidade”. Assim, a advogada leu a carta numa tentativa de despertar no júri uma simpatia pelo drama dos acusados, com a ideia de que até um dos mortos no além já estava disposto a perdoar.
Foi uma jogada de extremo mau gosto? Na minha modesta e leiga opinião, foi. E pegou tão mal que a própria advogada se desculpou publicamente. Mas, como ela mesmo ressaltou nesse pedido de desculpas, a prova foi apresentada, aceita e não foi impugnada pelo Ministério Público. Logo, as desculpas aparentemente não foram pelo caráter legal da estratégia de defesa, e sim pela repercussão negativa que se seguiu às manifestações públicas de ultraje e indignação de familiares das vítimas – inclusive de alguns dos familiares responsáveis pelo livro em questão no qual a carta havia sido publicada. Não foi um lance ilegal, mas a onda adversa que gerou era contraproducente se o objetivo era queria convencer um júri pela emoção ou pela empatia.
O teatro no STF
E tendo feito essas observações, chego ao que considero o ponto mais curioso do recente espetáculo performático apresentado pelos advogados defensores dos condenados recentemente pela tentativa de golpe realizada em 8 de janeiro. A essa altura, a maioria de vocês aí já viu com os próprios olhos, ouviu milhares de piadas e de análises a respeito da demonstração aparente de supremo amadorismo feita diante da mais alta corte de Justiça do país, mas vamos resumir para caber num tuíte. Um dos advogados disse que o STF era bobo, feio, cara de melão e odiado pela população (ó, rimou). Outro tentou demonstrar erudição de almanaque (sobre a qual, aliás, já dissertei aqui) e confundiu Maquiavel com Saint-Exupéry, O Príncipe com o Pequeno Príncipe, e Pôncio Pilatos com Afonso Nigro do Dominó. E, finalmente, uma advogada deu uma performance de blogueirinha na qual falou o tempo todo de si mesma e reservou alguns segundos para dizer: “Ah, e o meu cliente não fez nada disso aí não. Mas voltando ao meu desabafo…”.
No seu valor de face, pode ser só inépcia mesmo. Advogados despreparados para os meandros um pouco mais complexos da sustentação oral, que exigem retórica e um certo domínio de palco, metem os pés pelas mãos e, em vez de fazer uma defesa técnica, mas menos chamativa, decidem fazer do tempo diante da corte um comício ou um confessionário do BBB. Depois, comecei a pensar um pouco mais nos sentidos da coisa toda, alguns deles apontados já de pronto pelos próprios ministros algo perplexos com o espetáculo.
O caso da advogada me pareceu o mais emblemático porque me lembrou de um incômodo que eu vinha sentindo há algum tempo com o jornalismo, meu próprio campo de atuação: o quanto um número para mim alarmante de exemplares da nova geração gosta de se considerar tão importante quanto as reportagens que faz e os fatos que cobrem. Para ficar apenas no assunto da Kiss, que eu já falei: a cada aniversário da tragédia, pululam nas redes manifestações de jornalistas lembrando de “onde estavam” e “o que sentiram” quando ficaram sabendo da notícia (ninguém se importa, galera, desculpa aí).
Pensando um pouco mais, me dei conta de que esse pode sim ser um fator que explica o que se viu naquela sessão, mas não totalmente. Acho que o centro da questão é que o que se viu ali foram profissionais do Direito fazendo a performance esperada numa defesa em júri popular, mas diante da Corte Suprema do país. E ao contrário do que se poderia pensar ligeiramente, não se tem aí um erro de abordagem ou uma confusão de situações, pelo contrário, o que se tem é uma escolha consciente de abdicar da defesa técnica que seria essencial naquele tipo de julgamento e apelar para um teatro não para o conselho de jurados (sim, eu sei que o nome certo é “Conselho de Sentença”, senhores técnicos da área), mas para o chamado “tribunal das redes”.
Não sei o que pensar disso, excelentíssimos senhores leitores…
Não sei o que pensar disso, excelentíssimos senhores leitores…
Não sei o que pensar disso, excelentíssimos senhores leitores…
Não sei o que pensar disso, excelentíssimos senhores leitores…