De vez em quando aparece na mídia um debate sobre as “biografias não autorizadas” de celebridades que não aceitam que certas passagens de suas vidas venham à luz, reveladas por biógrafos indiscretos. Penso que quando se é muito importante, mais cedo ou mais tarde, alguém vai escrever a sua biografia; quando achamos que somos importantes (ou gostaríamos de ser) escrevemos uma “autobiografia”! Minha receita para esta última é: escolha passagens edificantes de sua vida; costure os eventos de tal maneira que tudo pareça ter uma lógica guiada por um destino que culmina no sucesso atual; perdoe os contrafeitos, construa-se como entidade magnânima e, finalmente, fale de sofrimentos pessoais como uma armadilha do acaso para que, ao final, tudo desse certo! Breve: mergulhe na própria “memória” e saia de lá com uma autoficção dramática com final feliz.
Mas alguém sempre descobrirá o lado obscuro de nós mesmos e revelará passagens que provocarão sempre o incontornável “Não acredito que ele possa ter feito isto!” Pensemos, por exemplo, em nossos heróis intelectuais em quem supomos sempre que, pessoas que escreveram obras tão admiráveis, devem ser proprietários de uma vida igualmente louvável. Isto provoca duas reações: na primeira, o admirador não se interessa pelos aspectos escuros da vida do herói, interessam suas ideias, ignorando deliberadamente o lado sombrio. Na segunda, ocorre o contrário: um sujeito que praticou tais ações não tem autoridade para me dizer nada de interessante, e ignora-se deliberadamente a obra. Na primeira versão, eu colocaria os pró-heidegger, na segunda, os anti-gilbertofreyre (a turma do “Nem li e nem gostei!”). Vai, a seguir, um rápido inventário do lado obscuro de alguns de meus heróis, como contribuição a uma futura História universal da infâmia (dos famosos).
Rousseau, autor de um livro seminal da pedagogia moderna, abandonou seus 4 filhos na “roda” de uma instituição religiosa (bonzinho Rousseau!); Marx, teórico da emancipação humana, tinha uma empregada ofertada em dote (pelo sogro) e com quem ele teve um filho ilegítimo, nunca o assumiu, pediu a Engels que o fizesse e o pobre do menino morreu como motorista de taxi em Argel em 1912! Quer coisa mais… “burguesa”? Heidegger, o filósofo do “esquecimento do ser”, mesmo depois de ter deixado o reitorado de Marburgo, continuou cotizando para o Partido Nazista até o fim da Guerra e jamais se retratou; Adorno, paladino da Teoria Crítica, usava o nome italiano da mãe (ele era Wisengrund) para esconder sua origem judaica e tentou negociar com os Nazistas sua permanência na Alemanha, antes de partir para o exilo americano; Edmond Wilson, o grande crítico cultural, descia a madeira em sua segunda mulher, a romancista Mary McCarthy; o ex-príncipe da filosofia uspeana, José Artur Gianotti, seguia o exemplo de Wilson em sua vocação, digamos, ginecosádica; Günter Grass, o romancista alemão autor de O Tambor, escondeu toda a vida sua participação nas Waffen SS nazista; Foucault, o denunciador da “sociedade disciplinar” apoiou o retorno do Aiatolá Khomeini (Irã,1979) cujas consequências as mulheres e a oposição iraniana conhecem muito bem! Marcuse, o pai da Grande Recusa, terminou como funcionário do Departamento de Estado (EUA), analisando o sovietismo…
Decepcionado, leitor? Ora, conclua que não devemos confundir bibliografia com biografia: a obra não é a expressão de uma vida pessoal exemplar e as canalhices que praticaram não diminuem o valor de sua arte.
Mas que foram canalhas, foram!
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Foto da Capa: Wikipedia