Desde muito novo, me pergunto qual é o sentido de escrever para mim. A pergunta sobre o sentido costuma apontar para os interesses pessoais de cada um que escreve. “Escrevo por uma necessidade”, “escrevo porque gosto” ou simplesmente “é prazeroso para mim”. Escrever é colocar em palavras pensamentos, descrever cenas. Lembro da famosa frase em inglês catada pelo Rush: “show, don´t tell”. Anos depois, no curso de escrita criativa, ela voltou, mas dessa vez com o convite para eu a colorir de algum jeito. Bom, eu estou aqui hoje.
Escrever então… um mar de coisas que, desde muito pequeno, eu gostaria de tomar contato. O meu terapeuta na época tinha uma pedra cheia de risquinhos na parede dele. Eu perguntei com a ingenuidade de uma criança de seis anos: “O que é isso?” Ele sorriu e disse, bem bobinho: “Eu não sei”. A questão das questões! Mais uma para o pequeno Estevan investigar. Na verdade, eu estava lá para investigar sim, mas coisas de mim, dos efeitos da separação dos meus pais, das tristezas e agruras inconcebíveis para um menino que só queria amar.
O menino cresce, publica um livro, O silêncio da Poesia, ganha prêmio com ele! E na dedicatória, o livro vai para meus filhos. É assim mesmo. Eu dediquei o livro para a continuidade da vida, para a perpetuação do que genuinamente é bom em mim. Eles podem nem ler esse livro, mas pelo menos fiz a minha parte! Esse fato é tão importante a ponto de eu pensar sobre ele quase o tempo todo. Onde quero estar? Onde quero que meus filhos se sintam bem? Será que minha escrita também não tem relação com os anseios das pessoas também?
E lembro que, das minhas leituras, uma delas me chamou muito atenção sobre esse tema da escrita. Foi no livro de Neemias da Bíblia (2006), em uma passagem em que Ezra, o escriba, começa a ler a Torá (conhecida como o Pentateuco), bem em um momento em que a cidade de Jerusalém está sendo reconstruída após o retorno do cativeiro na Babilônia. É tão curioso o que acontece com o povo durante essa leitura. Eu citarei literalmente a passagem do texto para que possamos ler juntos:
Então Neemias, o tirsháta, Ezra, o sacerdote e escriba, e os levitas que ensinavam, dissertam a todo o povo: “Este é um dia consagrado ao Eterno, vosso Deus; nele não deveis vos sentir entristecidos nem chorar!” – porque todos choravam ao ouvir as palavras da Torá. (Neemias 8:9)
E, como investigar hipóteses é uma boa tarefa para um detetive da alma humana, como eu me tornei anos depois, comecei a pensar sobre esse evento presente no livro de Neemias… Por que o povo judeu desatou em prantos? Alguns poderiam dizer que a leitura da Torá em praça pública é bela e toca na alma de todo o povo judeu. Contudo, nos parece mais claro que o povo ali reunido na reconstrução de Jerusalém estava escutando as letras uma a uma, trazendo a memória do que os hebreus haviam esquecido durante os longos anos longe de casa. Também foi atribuído a Ezra o alfabeto hebraico corrente, a escrita quadrática na qual a Torá foi inteiramente escrita até os tempos de hoje. Assim como a cidade foi reconstruída, o alfabeto hebreu foi criado com Ezra. E a emoção forte que tomou o povo também é ressignificada nessa passagem: “Então ele [Neemias ou Ezra] lhes disse [disse ao povo]: ‘Ide e comei carnes saborosas” (Neemias 8:10). Afinal de contas, era um momento feliz e ele deveria ser celebrado como tal.
Tão importante as lágrimas estarem envolvidas ali naquele momento. São as lágrimas a correrem como pequenas letras a construírem uma cidade nova, a cidade de Jerusalém e o novo Templo (beit ha-micdash), local onde as tábuas da aliança eram guardadas com devoção sacerdotal. Será com a destruição do Segundo Templo em 70 d.C. que o ensino da Torá passa a ser simbolizado em Yavné. Esse simbolismo é relembrado, trazido à tona com o canto extraído da própria Torá, pois já não eram possíveis os sacrifícios. Essa marca assume em nós essa estranha beleza, mas também representa o impacto de uma nova descoberta mais profunda acerca de como as palavras atingem tonalidades cada vez mais internas. São essas mesmas palavras que serão guias para a cura com o passar do tempo, quando deixam os livros e podem ser realizadas por cada um de nós. Escrevemos com lágrimas como o legado que iremos deixar aos nossos filhos, impreterivelmente. Nossos símbolos podem ser passados e carregados com algo com o qual nossos filhos se identifiquem. Isso é a base de toda a construção de sociedade e de mundo interno, sem os quais nos sentimos perdidos.
As palavras devem estar entre sons e histórias, amores e horrores, luz e trevas. Opostos complementares, como de costume. Contudo, só são singulares quando nos ajudam a dar sentido à vida, a curar o passado relegado às lágrimas.
Referências:
Bíblia Hebraica. Tradução de Jairo Fridlin e David Gorodovits. São Paulo: Séfer, 2006.
Estevan de Negreiros Ketzer é psicólogo clínico e Doutor em Letras (PUCRS). Email: estevanketzer@gmail.com
Foto da Capa: Freepik
Todos os textos da Zona Livre estão AQUI.