Dezembro bate à porta e com ele aquele sentimento tão conhecido e tão senso comum de assoberbamento diante de uma série de eventos, confraternizações e amigos secretos que, apesar de seu sentido original de celebração e alegria, trazem, ao contrário, um sentimento de correria, atropelo e obrigatoriedade. Todo ano é a mesma coisa e, ainda assim, não conseguimos escapar em nossos discursos e planejamentos desse mandato contemporâneo e cada vez mais imperativo de celebrar. Celebrar o quê exatamente? Sim, estamos vivos. Cansados, mas vivos. Exaustos de embates e discursos de ódio e aniquilamento do outro diferente, mas vivos. Exaustos de catástrofes climáticas, fruto de um empobrecimento do cuidado do ser humano com o planeta que habita e administrações levianas que abandonam cidades embaixo d’água, mas vivos. Exaustos de reuniões familiares em nome da harmonia e do amor que acabam escancarando dificuldades emocionais e um distanciamento crônico uns dos outros e de um consigo mesmo, mas vivos.
São convenções sociais que se estabeleceram e consolidaram o final do ano e suas “festas” como linha de chegada de um ano inteiro de “produtividade”. Então comemos demais, os que têm o privilégio e a sorte de poderem ter uma mesa farta na ceia de Natal. Bebemos demais, presenteamos pessoas das quais muitas vezes nem lembramos durante o ano e por quem muitas vezes nem temos tanto apreço assim. Gastamos demais, e, não é surpresa para ninguém, nos deprimimos demais. Ao contrário do que as propagandas mostram, há um sentimento de inadequação e frustração que paira nessa época justamente por esses mandatos de gratidão e felicidade que permeiam as festas de final do ano. Não sei o quanto seríamos capazes, enquanto sociedade, de aos poucos irmos questionando e diminuindo o tamanho desse momento. O discurso ao redor – ao menos na minha bolha – é sempre o mesmo: que correria, dezembro falta data ou espaço de descanso, falta dinheiro, que preguiça de tantos eventos.
Então por que tanto protocolo? Por que não focamos nas relações espontâneas e naturalmente agregáveis, que nos confortam e nos fazem sentir em Natal o ano todo? E o que o Lego tem a ver com isso? Essa semana terminei de montar com minha filha um Lego enorme que ela ganhou de aniversário. Montagem complexa, mas o Lego tem disso: manuais minuciosamente claros, peças separadas por pacotes numerados. Organizado como gostaríamos que a vida fosse. Fomos montando e o pensamento que me acompanhava era: como é satisfatório ver as peças se encaixando e o brinquedo se formando através das nossas mãos. Acho que o efeito psicológico é parecido com outra atividade, o jogo de palavras cruzadas. O sentimento de realização ao completar, a sensação de capacidade de fechar algo, concluir que aquilo que se promete na caixa se cumpre por intermédio das próprias mãos. Acho que é isso que o ano promete, ou inventamos que promete, e então cria-se a expectativa, ao final, de que o ciclo se completará, que as resoluções se cumpram. E quase nunca é o que acontece. A vida é esse Lego meio doido que na verdade ninguém tem a imagem exata do que vai conseguir montar ao final. Nem mesmo quando chega esse final. Uns vêm cheios de peças, completinhos, manual visualmente intacto e claro. Outros vêm desfalcados, capengas, páginas rasgadas, peças que faltam por histórias de vida mais ausentes.
É assim a vida, e o final do ano escancara esse desamparo. Ao mesmo tempo, assim como quando encaixamos mais uma peça, há sempre um sentimento de busca e uma teimosia pela vida que insiste em prevalecer (com sorte). A vida não é para amadores, eu sei. Finais nos desafiam, os do ano parecem mais óbvios, mas com eles também não seria diferente. Quiçá possamos pegar mais leve com a gente. São apenas datas, meses, convenções de tempo que precisam existir, mas não nos dominar. No mais, é lidar com amigos secretos, às vezes nem tão amigáveis e nem tão secretos.
Todos os textos de Luciane Slomka estão AQUI.
Foto da Capa: Gerada por IA