Ganhei do poeta Antonio Cicero uma edição portuguesa que reúne três livros seus lançados no Brasil: Guardar, A cidade e os livros e Porventura. Saiu em Lisboa pela coleção Plural, da Imprensa Nacional Casa da Moeda, em 2020.
Cicero, além de poeta, é formado em filosofia, tendo publicado também livros de ensaios. É letrista, parceiro de sua irmã Marina Lima, com que fez sucessos como “Fulgás”, aquela música que termina com “você me abre seus braços/e a gente faz um país”. Com Lulu Santos, é parceiro de “O último romântico” – “tolice é viver a vida assim sem aventura/deixa ser pelo coração/se é loucura, então melhor não ter razão”.
Em 2017, entrou para a Academia Brasileira de Letras. Nessa reunião dos seus livros de poesia, é possível ver a sua obra de versos para serem lidos em perspectiva. Diferencio aqui os versos para serem cantados dos para serem lidos.
Como letrista, Cicero recebe as melodias para colocar os versos. A melodia é a frase musical que, no caso da canção, é cantada com a letra. Mas, antes de ser criada a letra, foi criada a melodia. Por exemplo, pegue qualquer música que você conheça e cantarole com lá-lá-lá a parte da letra: “meu mundo você é quem faz…” Seria assim: lá-lá-lá lá-lá lá lá lá… Esse é o início da música “Fulgás”. Quando foi criada, era uma frase puramente musical, sem letra. Ali, nesse espaço, com esse tamanho, com esse desenho melódico, o letrista colocou a letra. Depois dessa etapa do processo criativo, letra e melodia passaram a ser uma coisa só. A gente canta. É um texto feito para cantar. A gente se lembra dele com a melodia.
Digo isso porque na reunião da obra poética dos livros do Cicero, percebo uma trajetória estética de apropriação gradativa do poema escrito. No primeiro livro, o que tem o hit de poema para ser lido “Guardar”, ainda se encontram poemas em que transparecem recursos próximos do letrista. Seja pela sonoridade, pelo ritmo, pela maneira de armar o texto, alguns poemas se relacionam com uma estética de letra de música. Mesmo que, antes de ser letrista, Cicero já escrevesse poemas, o desenvolvimento e mesmo o sucesso da sua produção como letrista marcaram de alguma forma a sua escrita.
Nos livros seguintes, os procedimentos criativos conquistados para produzir versos para serem lidos vão cada vez mais se acentuando. Em Porventura, seu livro mais recente, temos o poeta pleno, com poemas como este: “E se um poema opaco feito muro/te fizer sonhar noites em claro?/E se justo o poema mais obscuro/te resplandecer mais que o mais claro?”.
Se colocarmos de um lado a letra de música como mais próxima do texto claro, no sentido de que é feita para o canto, para todos cantarem juntos, aberta ao entendimento coletivo, e, de outro, o poema para ser lido no livro, na experiência solitária, com mais tempo para descobrir subtextos, para interpretar, o poema acima pode soar como uma declaração de princípios do poeta e sua conquista. Como se o Cicero poeta falasse esse poema para o Cicero letrista.
Foto da Capa: Eucanaã Ferraz/Divulgação