Se tem uma coisa que me deixa muito incomodada é quando ouço alguém dizer que antigamente o mundo era melhor. Nessas horas, eu me pergunto: melhor para quem? Para homens brancos e héteros que tinham toda a liberdade para tratar mal às mulheres? Melhor para quem fazia piada com negros ou pessoas com deficiências físicas ou intelectuais e não era punido por isso? Melhor para aqueles que nasceram em berço de ouro e nunca precisaram de cotas ou de bolsas de estudos para cursarem uma faculdade? Melhor para quem nunca passou fome e não precisou contar com qualquer assistência pública?
Eu nasci nos anos 1980 e vivi minha adolescência nos anos 1990. Apesar de ser branca e vir de uma família onde nunca me faltou nada, posso dizer que não foi fácil. Ser mulher naquela época era muito mais difícil do que é hoje. A objetificação da mulher, presente nos programas de televisão, nas propagandas de cerveja e de carros, me causava um incômodo que eu não sabia explicar. Não entendia como todos achavam normal sentar-se com a família, em um domingo à tarde, diante da televisão, para assistir a mulheres exibindo seus corpos diante das câmeras.
As mulheres permaneciam em silêncio enquanto os homens da família salivavam diante das telas, como se estivessem olhando pedaços suculentos de carne. Nada diziam — talvez para não parecerem ciumentas ou simplesmente porque não tinham voz diante de tamanho desrespeito. E esse desrespeito não era apenas moral ou contra os costumes familiares; era, acima de tudo, contra os corpos das mulheres — tanto das que eram exibidas como objetos quanto das que, impotentes, apenas assistiam, incapazes de se opor a tamanhos absurdos.
Com toda essa objetificação feminina, muitos homens se sentiam no direito de abordar mulheres que passavam nas ruas — não que isso não aconteça nos dias de hoje, mas, naquela época, era ainda mais difícil denunciar o assédio. Além disso, poucos reconheciam a gravidade dessas atitudes, e para as mulheres, reclamar significava, muitas vezes, enfrentar olhares de indiferença ou desdém.
Em seu novo livro, José Falero aborda com sensibilidade um tema infelizmente ainda tão relevante. Por meio de sua protagonista, Vera, que dá título à obra, o autor nos transporta para a década de 1990, marcada por um machismo e uma misoginia profundamente naturalizados: um período em que a violência sexual era minimizada e, sob a figura de “Tiazinhas” e “Feiticeiras”, as mulheres eram reduzidas a meros objetos de entretenimento masculino.
Vera é uma empregada doméstica que, enfrentando inúmeras adversidades, dedica-se a criar o sobrinho como se fosse seu próprio filho. Vivendo em uma comunidade empobrecida, seu núcleo familiar é composto majoritariamente por mulheres que carregam o fardo de terem sido abandonadas por homens irresponsáveis, além de crianças deixadas para trás por pais ausentes. A narrativa não apenas denuncia as opressões sociais e de gênero da época, mas também destaca a força e a resiliência das mulheres que sustentam suas famílias em meio ao caos.
José Falero escreve com maestria sobre as múltiplas dificuldades enfrentadas pelas mulheres das periferias, que, além de combaterem a extrema pobreza e suas consequências, precisam lidar com a constante presença de patrões opressores e companheiros abusivos. Vera, a protagonista, e outras mulheres apresentadas na narrativa são exemplos de resistência. Elas saem de casa ainda de madrugada, enfrentam ônibus lotados e retornam exaustas ao final do dia. Para garantir o sustento, deixam seus próprios filhos sob os cuidados de parentes ou vizinhos enquanto dedicam seu tempo e energia a cuidar dos filhos e lares de seus patrões.
Falero transforma essas histórias cotidianas, muitas vezes invisibilizadas, em um reflexo das desigualdades sociais e de gênero, mostrando como essas mulheres carregam nos ombros tanto o peso das responsabilidades quanto a força para seguir em frente, mesmo diante de um sistema que constantemente as oprime. Essa realidade de opressão nos remete a um passado recente que ainda encontra ecos nos dias de hoje.
Vera não é apenas uma personagem; ela é um símbolo das batalhas diárias enfrentadas por tantas mulheres. José Falero consegue, não só denunciar as injustiças, mas também prestar uma homenagem à força feminina, destacando sua importância no enfrentamento das mazelas sociais e na construção de novas possibilidades.
Ao encerrar a leitura, é impossível não refletir sobre o quanto já avançamos enquanto sociedade e o quanto ainda precisamos evoluir. Porque, afinal, o mundo nunca foi melhor para quem sempre precisou lutar por sua dignidade e seu espaço. Falero nos lembra que o passado deve ser revisitado não com saudosismo, mas como uma oportunidade de aprendizado e transformação, e que o futuro depende da maneira como construímos o presente, através de nossas lutas e comprometimento com uma sociedade melhor.
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Foto da Capa: Divulgação