Desde que a palavra “estrutural” entrou para a linguagem corrente para mostrar o quanto o racismo, o machismo e outras mazelas ideológico-culturais estão entranhadas no corpo social brasileiro, venho buscando sinais de suas manifestações. Faço-o por dever intelectual e pelo próprio desafio de encontrá-las em mim mesmo. Afinal, sou filho dessa mesma sociedade e só uma autoanálise pode me livrar de atitudes que não quero ter.
Na minha profissão de arquiteto já me acostumei que a maioria dos clientes não prestam atenção no que suporta o teto sobre suas cabeças onde vivem, não sabem diferenciar uma viga de um pilar. A questão de vencer a força da gravidade não tem a menor importância para eles. Ainda bem que nós, arquitetos, estamos atentos! Se prestar atenção em estruturas físicas exige esforço o que dirá de estruturas subjetivas.
Para mim, funciona como um jogo de esconde-esconde. Não é tarefa fácil, pois, justamente, a palavra fala do que não é visível, do que não está na superfície, mas, sim, do que nos dá suporte, do que nos forma e sustenta como pessoas.
Um caso relativamente prosaico no machismo estrutural – mas não deveria sê-lo, o assunto é sério – é o dos banheiros de casas de espetáculo de Porto Alegre. Quem costuma ir a concertos, shows e eventos de todas as espécies já deve ter reparado que nos intervalos formam-se filas nos banheiros das mulheres. A injustiça com elas é flagrante, mas ninguém, além das próprias, naquele momento, parece se incomodar. Alguns tecem razões biológicas, fisiológicas, de costumes, vestuário e tantas outras fantasias. E nada muda, há anos. E falo com conhecimento de causa. Comecei a prestar atenção nisso quando comecei a dar aulas de projeto em 1993. Inúmeras vezes, provoquei os estudantes, principalmente alunas, a protestarem, organizarem manifestos para que a situação fosse mudada. Os estudantes riam. Depois cansei, desisti. Deviam me achar meio maluco, preocupado com as filas dos banheiros.
Cheguei a pensar que o assunto poderia ser superado brevemente pela extinção da diferenciação entre banheiros masculino/feminino, quando todos passariam a ser unissex. Mas que nada, o livro Mulheres Invisíveis de Caroline Criado Perez conta que quando foi feita a integração dos sanitários no Centro de Artes Barbican, em Londres, a situação só se agravou. É que simplesmente os dois banheiros passaram a ser unissex com desvantagem para as mulheres que não podem, evidentemente, usar os mictórios masculinos enquanto os homens passaram a usar também as cabines antes exclusivas para as mulheres. Este livro, aliás, considero leitura obrigatória para todos que se inquietam com estruturas discriminatórias e especialmente necessário para arquitetos, planejadores e administradores públicos. É assustadora a discriminação que as mulheres sofrem, na cidade, de forma invisível.
O fato é que o Código de Obras do Município, que regula as condições mínimas de higiene e conforto das edificações, foi elaborado por cabeças masculinas. É nele que está a injustiça. Ali é exigido, em função da lotação de uma determinada casa de espetáculos, por exemplo, 6 vasos sanitários para as mulheres e 5 vasos sanitários mais 5 mictórios para os homens. Sim, está assim na lei há décadas. Ora, a diferença de critérios é flagrante. E se lembrarmos que, convenhamos, a vestimenta masculina é muito mais prática para a atividade mictória do que a feminina, temos um quadro bem definido do machismo estrutural nos sanitários dos nossos teatros.
Mas alguns poderiam dizer que o código de obras é apenas um referencial para os mínimos legais. De acordo. E isso é mais revelador ainda. Os profissionais arquitetos, homens e mulheres (o machismo não tem sexo) que poderiam reequilibrar o jogo, seguem projetando com as mesmas proporções do código de obras. Não sei se é sem pensar ou se são pressionados pelos contratantes. Não sei dizer. É uma questão que me intriga há muito tempo e me espanto de como ninguém muda isso.
Para mim esse é apenas um bom exemplo de como o machismo pode se entranhar na legislação sem que ninguém perceba, ninguém reclame e tenha sua normalidade assegurada. Tipo: a vida é assim, minhas senhoras, a fila dos banheiros lhes pertence, não há nada a fazer.
Se o problema do machismo na arquitetura estivesse só na questão dos banheiros femininos, seria muito fácil chegarmos a uma cidade igualitária. A sua invisibilidade até que é muito visível, convenhamos. Mas, não, esse é só um exemplo de como as mulheres não são consideradas nas suas necessidades particulares. Igualdade não é aplainar diferenças. Justo o contrário, é percebê-las e acomodá-las. E já que puxei o assunto, não posso deixar de incluir as pessoas com deficiência. Ignorados por muito tempo, só recentemente a sua visibilidade gritante passou a ser percebida e incluída na legislação.
Já passou da hora de prestar atenção na relação das mulheres com a arquitetura e a cidade. Elas precisam de soluções específicas para problemas que vão muito além das filas nos banheiros. Basta ouvi-las para saber quais são.