Numa das suas crônicas, Moacyr Scliar fala da “A culpa do sobrevivente”, termo que surgiu com o sentimento dos sobreviventes do holocausto que se perguntavam: “Eu deveria ter morrido com eles, eu deveria ter morrido no lugar deles, se não morri é porque sou tão mau, tão perverso, que consegui escapar”. Alguns dos sobreviventes não aguentaram essa culpa e cometeram suicídio.
A expressão “culpa do sobrevivente” foi utilizada também para os sobreviventes das guerras, de catástrofes e acidentes que ficavam com o trauma de ter sobrevivido enquanto outras pessoas morreram. A psiquiatra Vanessa Marsden diz que essas pessoas entram numa espiral de “porquês” e “e se…” e convivem com a dúvida permanente de não terem sido capazes de prevenir a tragédia ou de não terem feito mais para salvar as vítimas.
Mais recentemente os profissionais que trabalham com a saúde mental passaram a utilizar a “culpa do sobrevivente” para situações da vida cotidiana e do contexto familiar. Carol Tilkian, no seu podcast na CBN, diz que é muito difícil alguém ser feliz quando uma pessoa que ela ama está sofrendo. Carol ilustra com uma situação hipotética de duas amigas, em que uma convida a outra para jogar beach tennis e insiste para a amiga ir jogar. A amiga vai e durante o jogo quebra o joelho. A consequência é que precisará andar de muletas por alguns meses. Além disso, essa amiga está passando por um divórcio litigioso e está com a mãe doente em estágio terminal. A amiga que convidou a que se machucou dará todo o suporte possível, mas não terá coragem para contar que foi promovida e que no final de semana vai fazer um curso de mergulho se preparando para a viagem de férias em Fernando de Noronha, que sempre foi o seu sonho. Como irá compartilhar essas coisas boas e dizer que está feliz para a amiga que está passando por um momento terrível e colocá-la ainda mais para baixo?
Existem casos em que essa amiga que está feliz passou todos os dias visitando a que está em dificuldades, fazendo compras para ela, levando-a na fisioterapia e tentando animá-la. No final de semana, quando ela diz que não irá aparecer porque vai viajar para fazer o tal curso de mergulho, a outra lhe cobra: “Pois é, veja como é a vida, eu aqui sem poder caminhar e você fazendo curso de mergulho!” Aí, a que está bem começa a se questionar se deverá ir ao curso e deixar a amiga. Se decidir ir, irá cheia de culpas e não irá curtir porque não compreende que ela tem direito de ter um final de semana para cuidar dela. Carol Tilkian salienta a diferença entre “rede de apoio” e “ponto de apoio”. A pessoa precisa ter coragem de dizer “estou aqui para te ajudar, mas tenho direito a ter a minha vida, a minha felicidade”. Isso é um ato de amor-próprio.
Rossandro Klinjey diferencia a “culpa do sucesso”, que ocorre quando a pessoa conquista alguma coisa que a deixa feliz, da “síndrome do impostor”, que é quando a pessoa acha que não pertence àquele grupo e se pergunta se merece estar naquele lugar. A culpa do sucesso leva a pessoa a se perguntar se merece aquela conquista? Ela percebe que deixará de “pertencer à galera”, talvez se afaste da família, da igreja e do grupo de amigos. Ter sucesso significa se destacar dos demais, e nessa hora surge uma pressão velada para que a pessoa fique no mesmo nível dos amigos.
Segundo a Carol Tilkian, nessas situações nos tornamos “presa fácil” para a manipulação emocional, para relações tóxicas na família e com os amigos, nos levando a um processo de autoboicote e depressão. Provavelmente você conheça situações de filhos em situação financeira melhor que os pais e, embora ajudem os pais financeiramente, toda vez que se dão o direito de fazer algo que os pais nunca fizeram, sofrem uma cobrança, do tipo: “Nós nos sacrificamos a vida toda por você, meu filho, e agora você vai de férias para o exterior e nos deixa aqui, indo todo o verão para a mesma praia”. A felicidade do filho parece que “faz os pais sofrerem”.
Em famílias humildes em que um dos filhos ascende socialmente, o restante da família o critica por ele se vestir diferente, por usar palavras diferentes, etc. O caso do filho que se tornou advogado e o pai é um simples pedreiro, o filho terá que ter todo o cuidado com as palavras que irá usar numa conversa com o pai para não transparecer a diferença de vocabulário. Em algumas situações, essa família irá tentar sugar ao máximo que puder o dinheiro do filho bem-sucedido, como se fosse um pedágio pelo seu sucesso.
Existem famílias em que, na dificuldade, todos se unem para ajudar quem está precisando. Aflora uma solidariedade muito bonita. Mas, quando alguém se destaca, o sentimento não é o mesmo. Talvez seja inconsciente, mas existe o sentimento de “está nos abandonando”. É a tal pressão para “permanecer com a galera” que Rossandro Klinjey se refere.
O que se pode fazer nessas situações? Tanto Rossandro quanto Carol recomendam que a pessoa faça um balanço dos seus sentimentos e, mesmo que você ame muito as outras pessoas, permita-se ter raiva e se indignar com as manipulações, isso te ajuda a sair desse lugar. Analise que pensamentos te impulsionam para a autonomia e quais te prendem. Nas suas relações, quem te prende e quem te dá autonomia?
Referências:
- Moacyr Scliar – A culpa do sobrevivente
- Vanessa Marsden
- Carol Tilkian – CBN Amores Possíveis
- Rossandro Klinjey - Pare de sentir culpa por sua felicidade ou por seu sucesso #147
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