Quando acordei na sexta-feira recebi um choque ao ler a notícia pelo celular. Na sequência fui escutar o rádio para entender os detalhes. As nossas piores previsões tinham se realizado, um incêndio numa das unidades da Pousada Garoa, em Porto Alegre, naquela madrugada já havia ceifado nove vidas, que mais tarde levaria uma décima, e ainda iria ferir outras 15 pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Sou ativista em defesa da população de rua desde 2016. Gostaria de afirmar que a lição que aprendi em casa e que passei para minhas filhas vejo sendo praticada com relação aos cidadãos sem teto: todas as pessoas merecem respeito. Sabemos, eu e você, que isso não é a verdade. A população de rua é constantemente aviltada em seus direitos, permanentemente cobrada em seus deveres.
É incrível que com poucos banheiros públicos, sem espaços de acolhimento suficientes e dignos, sem disponibilizar alimentação adequada, muito menos ofertar atendimento de saúde e assistência social apropriada e sem programa de geração de trabalho e renda, a gestão atual se diga uma gestora de sucesso no que se refere ao cuidado de pessoas em situação de rua!
Como diria minha mãe: Quem não te conhece, te compra
Ouça aqui entrevista do Secretário Municipal de Desenvolvimento Social para Associação Comercial de Porto Alegre sobre sua gestão, em especial a partir do minuto 44.
Leia aqui o artigo no jornal ZH, escrito pelo proprietário das Pousadas Garoa, a respeito do modelo de acolhimento de sucesso por ele praticado.
Para começar, vamos entender como funciona o sistema de acolhimento via hospedagem.
Está na rua e entra no sistema da Prefeitura
Existe o Plano Municipal de Combate a Situação de Rua – sob Gestão da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) e executado pelos serviços da FASC (Fundação de Assistência Social e Cidadania). No que se refere à Abordagem, para melhor gestão do cuidado da população em situação de rua, a FASC dividiu a cidade em regiões. Em cada uma delas atua uma equipe do Serviço Especializado de Abordagem Social, grupo multidisciplinar que realiza um serviço de abordagem às pessoas sem teto, criando vínculos, conhecendo suas necessidades, dificuldades e, sempre que possível oferecendo uma alternativa para saírem das ruas. Enquanto essas pessoas estão nas ruas, elas são atendidas por uma rede de saúde e assistência social específica, CREAS e Centros POP.
Sai da rua e deixa de ser vulnerável? SQN
Quando a equipe de abordagem obtém resposta da FASC de que há uma vaga de acolhimento, como na Pousadas Garoa, a pessoa é chamada para seguir um processo próprio junto à FASC e à Garoa (esses protocolos nunca foram detalhados para nós, ativistas e movimentos sociais, mas em linhas gerais é assim que ocorre).
Quando ela passa a utilizar o serviço de acolhimento/hospedagem, acontecem duas mudanças expressivas: a) Ela deixa de ser atendida pela estrutura de saúde e de assistência social anterior, provocando uma quebra de vínculo importante com os profissionais que lhe atendiam e conheciam sua trajetória de vida. b) A própria pessoa precisa ir em busca de seu atendimento no SUS e SUAS, um sistema estranho para ela. Como em muitos casos estamos tratando de pessoas com saúde física e mental comprometida, estas alterações causam grandes prejuízos.
Neste momento a Prefeitura deixa de contabilizar essa pessoa como em situação de rua, mesmo que nos termos da lei da Política Nacional da População de Rua, porque ainda tremendamente fragilizada e vulnerável, ela permaneça assim sendo compreendida.
O ciclo se recicla, a rua é a saída
No serviço de acolhimento/hospedagem, a cidadã ou cidadão terá o direito de permanecer até conseguir se reorganizar com trabalho e outro espaço para morar (por conta própria, nota-se) por no máximo dois anos.
Para sair da situação de rua em definitivo, estudos apontam que são necessárias políticas expressivas de apoio e compensação porque muitas vezes é uma situação transgeracional de até seis gerações. Até se chegar a esse objetivo, é fundamental o acompanhamento das necessidades singulares de cada pessoa, sem prazo definido, com um grupo multidisciplinar.
Esse crime podia ter sido evitado
A Prefeitura sabia 1
Em fevereiro de 2023, o Ministério Público abriu inquérito para apurar improbidade administrativa na Pousada Garoa, onde são citadas as péssimas condições de higiene na Unidade São João, seu funcionamento e a falta de PPCI. Tudo documentado com imagens e depoimentos. A FASC, por meio de seus servidores, vinha participando de Audiências, inclusive, deste processo que ainda está em andamento.
A Prefeitura sabia 2
Em julho de 2023, o Conselho Municipal de Assistência Social encaminhou uma série de questionamentos para a direção das FASC sobre o tipo de modalidade de acolhimento, projeto técnico, quem era o responsável pela fiscalização, entre outras várias perguntas. Faz-se necessário esclarecer que a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e a FASC têm assento neste Conselho. Como não recebeu resposta, o Conselho decidiu registrar o processo no SEI (plataforma de gestão de órgãos públicos).
A Prefeitura sabia 3
O Prefeito Sebastião Melo, em 22 de fevereiro de 2024, por conta de um acordo firmado na Ação Civil Pública (Nº 5053278-52.2019.4.04.7100/RS – ACORDO – 15/07/2022) com a Justiça Federal, emitiu o Decreto 22.509, que dispõe sobre os procedimentos e o tratamento à população em situação de rua durante a realização de ações de zeladoria urbana, restauração de espaços públicos e acessibilidade.
Nele, há todo um capítulo sobre o Acolhimento que a Prefeitura se responsabiliza a oferecer para as pessoas em situação de rua. Para que esse acordo fosse firmado nessa Ação, foi realizado um intenso e longo trabalho entre o Judiciário, a sociedade civil e a Prefeitura. Meses de construção. Eu, pessoalmente, participei de uma parte dele. Entre todos os conteúdos produzidos e contidos nesta Ação Pública, consta um dossiê com informações e denúncias a respeito do que agora a mídia constatou sobre as condições indignas que o Grupo Pousadas Garoa oferece para a população em situação de vulnerabilidade social.
O que acontece?
O gestor municipal, até agora, alega desconhecimento destes fatos. Mas é rápido em afirmar que nunca recebeu nenhuma denúncia. Ainda diz que essas Pousadas foram vistoriadas no passado por seus fiscais responsáveis e entendidas como aceitáveis.
Pessoas vulneráveis, que pouco ou quase nada tinham (“apenas a vida?”), que confiaram na Prefeitura, foram encaminhadas pela FASC para acolhimento nas Pousadas Garoa. Lá encontraram a morte nas ratoeiras contratadas pela gestão municipal. E agora? Quem paga por essas vidas? Será que toda essa desimportância é por que se tratavam de vidas “baratas e descartáveis”?
Foi crime ou tragédia?
Em quase todas as reportagens e matérias que li, chamam este incêndio de tragédia. Fiquei curiosa e fui ao “amansa burro” para buscar sinônimos e tentar entender essa escolha. As palavras que lá encontrei foram “desastre, adversidade, azar, calamidade, catástrofe, contrariedade, desdita, desfortúnio, desgosto, desgraça, desgraceira, desventura, fatalidade, fortuna, infelicidade, infortúnio, lástima, má sorte, mal, mofina, perda, revés, tribulação”. Todas elas vêm de um evento do qual a gente não tem controle sobre ele, onde nada poderia ser feito, como a queda de cocô de passarinho na cabeça, alagamentos, secas, tsunamis, terremotos…
Convenhamos, este incêndio com dez mortes e 15 feridos foi um crime. A Prefeitura e a Garoa sabiam dos riscos que as pessoas corriam estando hospedadas na Pousada. A Polícia indicará de qual tipo, se doloso (com intenção de cometer o crime) ou culposo (quando não quer nem assume a intenção do resultado do crime).
A Prefeitura, a Garoa e toda a sociedade sabem, desde a madrugada de 26 de abril de 2024, os riscos que todas as pessoas que continuam sob esta espécie de acolhimento, continuam correndo. Isso não foi uma tragédia.
Culpabilizar as vítimas
Repetidamente tenho escutado o gestor municipal, que tem sido o porta-voz da gestão atual a respeito deste tema, sugerir que este incêndio criminoso foi com intenção, praticado por alguém, dando a entender que o estilo de vida das vítimas nesses ambientes das Pousadas é impróprio, o que explicaria um ato dessa natureza. Importante: o Delegado responsável afirmou que é provável que o crime tenha sido sem intenção, citando as condições inadequadas da Pousada, aguardando o resultado da Perícia que ainda não identificou o foco. Assim, a Prefeitura se utiliza de uma estratégia diversionista além de preconceituosa para se defender. Do que, mesmo, se diz que não tem culpa de nada?
Será que o mais importante é a existência do PPCI e Alvará?
Muito tem se falado sobre a falta dessa documentação. Penso que a existência do Plano de Prevenção Contra Incêndio – PPCI para um Alvará deveria ser condição obrigatória para uma atividade como a de hospedagem de pessoas e que, como constatamos, quando inadequado estará colocando em risco as vidas das pessoas.
Sabemos que existem construções que até hoje não receberam seus Alvarás e licenciamento de PPCI, mas não por isso deixaram de respeitar suas regras ou de se preocupar, minimamente, com as condições de segurança das pessoas. Um simples olhar para as condições das Pousadas Garoa basta para saber que a desqualificação é geral nas instalações, desumanas, e que a Prefeitura de Porto Alegre vinha aceitando-as repetidamente desde 2020. A Prefeitura se esconde por detrás dos seus regulamentos e deixa claro que o menos importante nessa parceria foi a segurança e a dignidade das pessoas a quem devia proteção.
Temos dois olhos, dois ouvidos e uma boca por uma boa razão.
Perguntar pra quem usa
Nesse incêndio criminoso, no qual tivemos dez pessoas carbonizadas e 15 feridas, fico imaginando como teria sido se as pessoas acolhidas neste espaço tivessem tido a oportunidade de dar opinião sobre a hospedagem que recebiam. Também fico me perguntando se, na tão alardeada vistoria que farão depois do incêndio nas unidades restantes, os “técnicos” perguntarão aos atuais hóspedes qual é a opinião deles sobre seus “quartos individuais”. Será que a Prefeitura se importa?
Ir à fonte para compreender e se ajustar
Há anos existe um embate entre a gestão municipal e os movimentos sociais e coletivos ligados a população de rua a respeito do número real de pessoas que se encontram em situação de rua em Porto Alegre. A prefeitura afirma que o número atual gira em torno de 2500 pessoas. O último Censo oficial foi realizado pela UFRGS em 2015! Há nove anos encontraram-se 2115 pessoas em situação de rua. Será que não está na hora de a Prefeitura ir em busca de informação qualificada?
Escutar e dialogar com a sociedade
Está previsto na Política Nacional da População de Rua, promulgada em 2009, a instalação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População de Rua. Nele, movimentos sociais conectados com a população de rua com representantes da gestão municipal se escutam, dialogam, constroem e desenvolvem ações em parceria, inclusive a respeito do tipo de acolhimento que o cidadão em situação de rua precisa. O Governo Melo nunca instituiu esse Comitê, mesmo sabendo que há verbas disponíveis em nível federal possíveis apenas por esse caminho. Por que será?
Sem trabalhar com informação qualificada, sem escuta daqueles a quem deveria servir, sem cuidado aos detalhes básicos no que realiza… Com tanta onipotência, a dor, o sofrimento e a morte podem acabar sendo um dos fins da história: O massacre da Garoa.
Foto da Capa: Acervo da Autora
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