Sou um mau filho. Sempre fui. Não me lembro muito bem do começo, mas reza a lenda que já comecei assim. Cabeça grande, custei para nascer, provoquei até um corte no períneo da minha mãe. Parece que ficou uma cicatriz.
Uma vez nascido, a azucrinação continuou. Chorei muito nos primeiros anos, só comia quando queria, não respeitei o repouso dos meus pais. Logo que caminhei, caí muito, quebrei braço, rasguei perna, joelhos cronicamente esfolados.
Bati a cabeça com certa frequência, demandando observação constante, em tempos sem tomografia. E, logo que falei, raramente disse o que queriam ouvir. Não tive a inteligência que desejaram para mim. Nem o time. Nem a ideologia. E nada disso se compara com o que aconteceu mais tarde, na adolescência.
Ali não respeitava a hora de voltar para a casa, voltei a ter insônia, experimentei maconha e lança-perfume, não acendi velas para os santos, roubei a vela do motor de um amigo que não queria me emprestar a sua moto. E blasfemei muito, durante longo tempo, por não ter ganho uma para mim.
Nada disso se compara com o que aconteceu mais tarde. Quando me tornei adulto, não virei em definitivo o que os pais desejavam, longe disso: continuei egoísta, fazendo o que o meu coração mandava, apoiado pelo pensamento próprio, único, original, por mais que não fosse grande coisa.
E nada disso se compara com o que aconteceu mais tarde. Quando os pais envelheceram, não parei a minha vida para cuidar deles. Cuidava só acompanhando, atentamente, mas sem deixar de continuar vivendo a minha própria.
Nunca fiz o que o material publicitário apregoava que um bom filho faz.
Nunca segui, neste quesito, o mandamento de uma religiãode qualquer época.
Nunca fiz o que a cultura reconhecia como um filho bom, nos séculos XX e XXI.
Sou um mau filho.
Sou um filho herege.
Sou um filho agnóstico.
Quando fiz a primeira revisão mais profunda de minha vida, lembrei do psicanalista francês Serge Lebovici. Para ele, o grande benefício de sua análise pessoal foi ter se tornado mais sedutor. Para o seu colega brasileiro Gley Costa, foi não depender dos outros para se sentir valorizado.
Da minha revisão, ficou uma convicção afetiva de que os meus pais eram mais do que suficientemente bons. Eles foram, de fato, excelentes, sobretudo por nunca terem deixado de amar um filho que não atendia aos seus inevitáveis e perigosos narcisismos de mãe e pai.