Desde o paleolítico, informam os arqueólogos, o homem, em sua luta contra a dor, empregou vários métodos e técnicas. Sabe-se que os assírios faziam o paciente dormir exercendo pressão manual sobre as artérias carótidas, diminuindo assim a irrigação do cérebro e provocando a perda da consciência. Na Idade Média, amputavam-se braços e pernas, usando-se como anestésico uma beberagem contendo álcool e pólvora.
Por volta de 1800, o químico Humphey Davis descobriu os efeitos analgésicos de um gás, o protóxico nitroso. Em 1842, foi empregado o éter pela primeira vez pelo médico norte-americano C.W.Long.
Em seguida, o ginecologista inglês J.Simpson descobriu o clorofórmio e, finalmente, em 1885, o médico norte-americano Dr. F. Coming começou a utilizar a anestesia peridural com a injeção de um anestésico no espaço peridural da coluna, o que resultava na eliminação da dor na parte inferior do abdômen e permitindo que o paciente ficasse desperto durante a cirurgia. A peridural, olvidada por algum tempo, foi retomada a partir de 1960 como analgesia obstétrica pelo Dr. John Bonica, nascido em 1917 na Sicília. Emigrando para os EUA e com a morte de seu pai em 1932, John, com 15 anos, teve de sustentar sua família, residindo num cortiço do Brooklin. Depois de trabalhar como engraxate e numa fábrica, logo se destacou como um forte boxeador. E ganhando dinheiro com o box, Bonica entrou para a Faculdade de Medicina, seu grande sonho infantil, tendo lutado como profissional durante 14 anos. Durante o período de estudos na Faculdade em Milwaukee (1938-1943), suas atuações se limitavam a Wisconsin e em alguns estados vizinhos.
Entre 1936 e 1950, tornou-se um disputado profissional dos ringues e lutou em praticamente todas as mais importantes cidades dos EUA e do Canadá. Como desejava continuar seus estudos sem interrupção, durante os dois últimos anos de Faculdade (1936-1938) e nos dois anos subsequentes, enquanto cumpria seu estágio e formação na especialidade (1942-1944), disputava lutas à noite em Nova Iorque e cidades próximas, tendo enfrentado a maioria dos pesos pesados da época.
Durante sua intensa vida profissional como médico, Bonica escreveu 41 livros, contribuiu para outros 60 e escreveu 241 artigos em revistas. Considerado como um clássico da anestesiologia, o seu tratado Manejo da Dor foi publicado em 1953, mas a sua obra de maior sucesso foi a segunda edição do mesmo livro, publicada em 1990. Depois que sua esposa quase morreu durante complicações de uma anestesia geral no parto de seu primeiro filho, Bonica começou a se dedicar ao estudo da dor em obstetrícia.
Seu livro Princípio e Prática da Analgesia e Anestesia Obstétrica de 1967 tornou-se um definitivo legado científico divulgado em todo o mundo com o objetivo de controlar e diminuir a dor durante os partos.
Depois de realizar cerca de 50 mil analgesias peridurais em partos e outras cirurgias, em 1970 Bonica resolveu estudar o emprego da acupuntura em obstetrícia num centro cirúrgico da China. Durante dois meses, assistiu a várias cirurgias anestesiadas com o milenar método chinês. Certo dia, reclamou do cirurgião-chefe de serviço que ainda não tinha visto a acupuntura empregada em parturientes. O velho cirurgião retrucou que não utilizavam tal procedimento anestésico porque, “simplesmente, o parto não causa dor”.
Indignado com a resposta, Bonica então perguntou se os colegas chineses sabiam explicar qual seria o mecanismo de ação da acupuntura. Diante da resposta negativa, o anestesista norte-americano retrucou, dizendo que não se coadunava com a boa ciência empregar uma técnica médica sem conhecer suas bases fisiológicas.
Calmamente, o provável confucionista e cirurgião perguntou se os médicos ocidentais sabiam como funcionava o medicamento mais usado no mundo, o ácido acetilsalicílico, a aspirina.
De fato, as ações analgésicas, antipiréticas e anti-inflamatórias daquela droga só foram elucidadas como opositoras das prostaglandinas, causadoras da dor, da febre e das inflamações em geral, a partir de 1971, pelo cirurgião inglês John Vane, que por tal descoberta recebeu o Nobel de Medicina em 1982.
John Bonica faleceu em 1988. Dele nos ficou o exemplo de uma vida inteira a lutar para vencer a profética dor divina, empregando sua capacidade intelectual, com as mesmas decisão e força com as quais vencia seus adversários nos tonitruantes ringues de box.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras
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