Fui literalmente capturada por A Vegetariana, de Han Kang, prêmio Nobel de Literatura de 2024, um romance que explora a trajetória perturbadora de Yeonghye, uma mulher sul-coreana aparentemente comum que, após um sonho inquietante, decide abandonar completamente o consumo de carne. Esse gesto desencadeia uma série de conflitos familiares, pois, à medida que sua decisão se torna mais extrema, Yeonghye mergulha em um estado de isolamento e alienação.
Em meio a questões profundas sobre o sofrimento humano e a violência brutal sofrida na infância, chama a atenção o papel simbólico central das árvores na narrativa: Yeonghye almeja se tornar uma árvore. Nesse sentido, é interessante o papel atribuído às árvores. Em sua imobilidade e resistência silenciosa, elas se tornam uma forma de protesto contra estruturas opressoras, talvez como uma tentativa de retorno a um estado pré-humano, onde não há linguagem, moralidade ou sofrimento consciente. Essa identificação pode ser vista como uma crítica à natureza destrutiva e artificial das normas sociais.
Ao longo do livro, Yeonghye se torna cada vez mais distante de sua vida anterior e dos papéis tradicionais que representava. Essa transformação radical me fez lembrar o ciclo de vida das árvores, que perdem suas folhas para renascer na primavera. Para ela, esse processo de “desumanização” pode ser visto como uma forma de renascer em uma nova existência, livre das marcas de sua vida anterior.
A escrita de Han Kang é carregada de imagens perturbadoras e simbólicas, com cenas de violência tanto física quanto psicológica, e descrições vívidas dos sonhos de Yeonghye, que envolvem elementos de sangue, carne e natureza. Essa imagética é essencial para criar a atmosfera de desconforto e transmitir as tensões e desejos reprimidos que permeiam a narrativa.
O ponto que destaco como central é a metáfora da transformação de Yeonghye em árvore, que se torna fundamental na estética do livro. As descrições de seu corpo cada vez mais magro, com a pele assemelhando-se à casca de uma árvore e os braços como galhos, criam uma mistura perturbadora de corporalidade e vegetalidade. Uma espécie de tentativa de fusão entre o humano e o não-humano, o orgânico e o inorgânico, que confronta o Outro e desestabiliza as fronteiras tradicionais entre o natural e o cultural, gerando uma estética que é ao mesmo tempo bela e aterrorizante.
Embora minha análise possa ser um tanto “selvagem”, baseada na minha profunda relação com questões socioambientais, as cenas envolvendo florestas são fundamentais para entender a jornada de Yeonghye e sua transformação radical. Nesse ponto, lembrei-me do texto de Maria Rita Kehl, Reservas do Imaginário, publicado originalmente no blog da Boitempo (2011).
Mesmo quem nunca pisou na Antártida ou na Amazônia sabe que habita um planeta onde vivem araras e pinguins, onde existem grandes florestas e geleiras, onde nem tudo tem a cara da nossa civilização. Precisamos das reservas naturais como reservas de mistério, de desconhecido, de fascínio e de medo. Reservas de escuridão.
Esse texto se apoia no que Freud escreveu nas Conferências Introdutórias (1916-1917) sobre o fato de que “a criação do domínio mental da fantasia encontra um paralelo perfeito no estabelecimento de ‘reservas’ ou ‘parques naturais’ em lugares onde as exigências da agricultura, das comunicações e da indústria ameaçam ocasionar mudanças irreversíveis na face original da terra, que logo a tornarão irreconhecível. Uma reserva natural conserva o estado original em que todas as outras partes foram, para nosso pesar, sacrificadas à necessidade. Todas as coisas, incluindo o que é inútil, nela podem crescer e proliferar livremente.”
No delírio da personagem, a metáfora das árvores em A Vegetariana, de Han Kang, pode ser interpretada como um convite para refletir sobre a importância das “reservas do imaginário”, espaços simbólicos e concretos onde o desconhecido, o natural e o instintivo permanecem intactos, tanto no mundo exterior quanto no inconsciente. Essas reservas, associadas pela psicanalista Maria Rita Kehl à natureza não domesticada, representam uma dimensão essencial da experiência humana. Quando ignoramos a destruição catastrófica dos ambientes naturais, não apenas comprometemos a sustentabilidade física do planeta, mas também erradicamos esses espaços simbólicos de resistência e mistério, essenciais para a própria experiência de ser humano. Promovemos uma alienação profunda e um vazio existencial que vão além da perda física.
Ana Lizete Farias é psicanalista, geóloga - UFRGS; MSc. Geologia Ambiental – UFPR; Dra. em Meio Ambiente e Desenvolvimento - UFPR.
Foto da Capa: Reprodução do YouTube
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