Eu já escrevi algo parecido numa coluna anterior, mas cheguei na idade em que, infelizmente, muita gente que eu conheci já morreu. E cada morte dessas parece levar consigo um pequeno pedacinho do universo que me cercava e que, por um átimo, fez um leve contato com o universo representado pelo mundo daquela pessoa. Muito do que somos é feito de histórias, e muitas mortes deixam claro o quanto as histórias que nos conectam aos que se foram são tênues, e agora só sobrevivem em sua mente.
Não falo de realizações biográficas ou da importância de algumas pessoas enquanto profissionais de algum campo específico. Falo das interações banais que talvez nem tenham testemunha, ou que não tiveram nenhuma importância para além da criação de uma memória compartilhada – o que, talvez, as torne algumas das mais importantes interações que já tivemos na vida. Não é a biografia que nos impacta na morte de uma pessoa. É o quanto nos vemos, de uma hora outra, responsáveis por sua lembrança
Plínio
Há quase três anos, por exemplo, morreu Plínio Nunes, um jornalista com quem trabalhei na Zero Hora nos anos 1990 e 2000. Uma das pessoas mais doces e mais legitimamente interessadas pelos outros que já conheci. Editor, Plínio criou por sua iniciativa, e manteve por sua insistência, um espaço, ainda que reduzido, para publicar fotos de pessoas desaparecidas pedindo auxílio a quem pudesse ter alguma informação a respeito. Imagino que numa era marqueteira como a de hoje algo parecido só seria criado a fim de encher a bola do próprio veículo fazendo marketing social em stories de Instagram, mas o Plínio insistia nesse tipo de publicação porque sabia que muitas pessoas já haviam sido encontradas graças a isso – e nunca fez ampla propaganda disso. Para ele, valia a continuidade do espaço – que ele levou para o Diário Gaúcho, do qual foi um dos fundadores.
Mas esse é um elemento biográfico da vida do Plínio. O que eu sinto falta é de sua rapidez no gatilho quando o assunto eram trocadilhos. Ou de como conversávamos tomando café no bar da redação e ele nunca deixava de incluir na conversa sua paixão, que ele mesmo a essa altura já sabia folclórica e um tanto ingrata, pelo Guarany de Bagé. Me disse ele ainda em 2011: “Ó, viu? O Guarany ganhou esse fim de semana. Está em pleno andamento o Projeto Tóquio 2015. Esse ano a gente ganha a Terceira Divisão, ano que vem a Segunda. Ganha o Gauchão em 2013, a Copa do Brasil em 2014 e a Libertadores em 2015”. O detalhe é que esse plano era atualizado anualmente com o bom humor conformado de quem torce por um time pequeno. Pequeno, não, apequenado, porque Plínio também declinava na ponta da língua as glórias de seu clube: o maior vencedor da Série A do Gauchão depois da dupla Gre-Nal, o time mais antigo com atividade ininterrupta etc.
Bela
Na Zero, também conheci a Maria Isabel Hammes, a Bela. Editora de economia respeitada, ela sentava-se em um mesa logo na entrada da Redação, com as páginas impressas do setor de Economia na mão, revisando a caneta. Aí eu passava por ela direto, porque uma das coisas que sempre me encheu o saco (e me enche até hoje) é gente puxando papo quando você está claramente mergulhado na leitura de alguma coisa. Mas aí a Bela gritava o meu nome quando eu passava, cara de braba, com sua voz rouca e direta, reclamando que eu não a cumprimentei na passagem. Eu explicava que odiava quebrar a concentração de alguém que está lendo e ela dava um sermão bem-humorado sobre comportamento.
“Não interessa, André. Cumprimentar é educação”
Bela morreu faz uns 10 anos. Todos os que a conheceram sentem falta dela.
Em um momento, David Coimbra era um cronista conhecido no Estado inteiro, suas posições políticas cada vez mais controversas, seus textos cada vez mais provocativos. Um tempo, foi muito amigo do Paulo Sant’Anna, que o saudou como se saudasse um sucessor. Quando Sant’Anna percebeu que as pessoas estavam levando a sério a ideia de que David talvez fosse realmente seu sucessor, os dois romperam. O egomaníaco gigantesco que Sant’Anna era não aceitava sucessão – e mesmo quando ela não estava em discussão ele a via no caminho. Ele próprio escreveu isso.
David
Para mim, David era um amigo – algo que até hoje quando admito me causa problemas porque aparentemente a boa gente elevada do Rio Grande do Sul acha que as pessoas funcionam como pacotes homogêneos. Mas David foi sim meu amigo. E como David escrevia diariamente e qualquer coisa podia virar assunto, era comum ele usar seus amigos e colegas como temas de suas crônicas. Havia um procedimento aí, contudo. Ao nos transformar em personagens, David nos fazia virar uma espécie de “versão desenho animado” de nós mesmos, em que um elemento era ressaltado corriqueiramente até virarmos um personagem de um ou dois tons, no máximo. Diogo Olivier, até hoje repórter atuante na área do esporte, era retratado como um distraído capaz de esquecer qualquer coisa. Outro então repórter costumava ter suas aventuras descritas como as de um ingênuo com propensão ao sincericídio e a ser enganado pelas mulheres (sabendo que aqui estava pesando a mão, David trocava o nome desse personagem em particular, razão pela qual também não o revelo aqui). E quando Davi me transformava em um de seus personagens, eu era uma mistura de intelectual sem propensão para a vida prática e um cabeça-quente dado a explosões de raiva (digamos que as duas caracterizações eram até justas, tomadas de traços reais da minha personalidade na época).
Certa vez ele me convidou para gravar vídeos para o blog que ele mantinha na ZH – eu seria um personagem ao estilo “o homem mais irritado do mundo”, descrito no livro Como Ser Legal, de Nick Hornby. Um cara com língua afiada e fúrias gratuitas. Gravamos um vídeo em que eu basicamente fazia algumas piadas sem graça sobre a Cow Parade então onipresente nas ruas da cidade. Ele disse que curtiu o resultado, eu não. A ideia também de fazer de mim um personagem revoltado (embora na vida real se pudesse dizer que eu era basicamente aquilo) também não me apetecia. Porque apresentava uma leitura fácil demais. Sim, eu já fui irascível, raivoso, destemperado, explosivo, mercurial. Mas não sou só isso, e depois de assumir o personagem, seria isso que eu precisaria ser, e essa simples ideia me encheu de uma repugnância que eu pulei fora do projeto.
Por parte do David, tudo bem, ele seguiu me usando como personagem em suas colunas – graças a elas, até hoje alguns me perguntam se eu realmente costumava ficar lendo embaixo das traves enquanto atuava como goleiro nos jogos que o grupo fazia todo final de semana e às vezes nas noites de quarta (a ideia de que em algum momento dos anos 1990 eu já fui fominha o bastante para jogar bola duas vezes por semana hoje parece distante até para mim). Não, não era verdade, era o David satirizando a realidade e me sacaneando no processo. Uma pessoa que poderia comprovar isso também partiu essa semana, aliás, e é o motivo para este texto.
Paulo
Nesses jogos, que eram religiosamente jogados aos sábados à tarde e às vezes nas quartas de manhã, reuniam-se jornalistas de várias procedências, alguns trabalhavam na ZH, outros no Correio, outros já haviam passado pelos dois e hoje estavam em assessorias ou fazendo outras coisas. Havia sempre muita gente, mas apenas dois goleiros fixos. Um deles, o até hoje repórter cultural Roger Lerina. O outro, Paulo Moreira, cuja figura ruiva e espevitada combinava com a incandescente personalidade de um líder em campo – sendo que a última coisa que jornalistas aceitavam naquela época era um líder, fosse na redação, fosse na quadra de futebol (tremo só de ver o quanto as coisas mudaram desde então…)
Moreiras
Eu comecei a ir a essas partidas porque gostava de futebol e porque acredito bastante no que disse Camus acerca de ter aprendido muito sobre a natureza humana enquanto jogava como goleiro. No futebol se conhecem as pessoas, as máscaras caem com maior facilidade. Paulo era um goleiro que xingava seu time quando achava que a defesa vacilava e o deixava sozinho. Mas de algum modo, transparecia por baixo dessa impaciência um sentido generoso e uma entrega ao jogo. Nunca maldade. Havia outros no jogo que se compraziam em fazer o mesmo e seus sentimentos eram claramente menos puros – tanto que, apesar de arranjar bate-bocas eventuais com seus parceiros de time, Paulo nunca era “desconvidado” do jogo.
Paulo era crítico de cinema e um grande especialista em jazz, e foi um militante da divulgação do estilo por décadas no rádio gaúcho. Esses são os elementos biográficos que você pôde ler em muitos dos textos que foram escritos sobre ele (o melhor deles, este de autoria do também “goleiro oficial” daqueles jogos, Roger Lerina, na Zero. O que eu me lembro do Paulo, entretanto, é mais difuso e particular. Mais próprio e peculiar.
Quando eu cheguei, também atuando como goleiro, nos tornamos um trio de arqueiros para uns 20 ou 30 jogadores de linha – assim, era comum quando estávamos os três dividirem todo mundo em três times e um ficar de fora esperando o resultado do “match” de 15 minutos entre as outras duas equipes. Paulo foi sempre de uma generosidade imensa na acolhida ao “goleiro recém-chegado”. Tínhamos o mesmo sobrenome, então ele começou a me chamar de primo. Quando eu fazia alguma defesa boa ou até mesmo incomumente iluminada, ele, seja da outra trave ou da beira do campo onde assistia ao jogo enquanto esperava, gritava o seu elogio irônico: “mais um triunfo da família dos goleiros Moreiras”. Também era comum que me chamasse de “O segundo melhor goleiro da família Moreira”. Quando alguém perguntava se o primeiro seria o Aguinaldo Moreira, ele respondia que a única coisa que o Aguinaldo fez na carreira foi carregar o Pelé no ombro.
Paulo era um arqueiro de gestos teatrais, à moda Higuita, inclusive no uso frequente dos pés para defesas atléticas meio impossíveis. Também era brincalhão, generoso, divertido, espevitado. Uma presença alegre e um dos papos mais agradáveis no “pós-jogo” em que um bando dos presentes ficava tomando cerveja e jogando conversa fora. Certa vez me disse, enquanto comentávamos o recém estreado Contato, com Jodie Foster, que havia gostado do filme mas achado a duração excessiva. “Não tem filme que justifique duas horas e meia de duração”. Não cheguei a perguntar para ele o que andava achando a atual onda de filmes expandidos em que qualquer Marvel decide que seu filminho de herói vale duas horas da plateia.
Paulo Moreira abandonou o futebol nas últimas duas décadas de sua vida, devido ao preço cobrado pela luta contra a doença que no fim o levou. Toda vez que falei com ele, sempre fez alguma piada sobre estar pensando em voltar. Porque mesmo debilitado fisicamente, o que era visível, jamais disse um ai dos sofrimentos que vivia, manteve o mesmo espírito alegre, expansivo e de um brilho inteligente.
No ano que está se aproximando, completo meio século de vida. Muito já vivido, novo o bastante para se eu morrer de uma hora para outra o pessoal ainda lamentar com um “que pena, tão moço”. E talvez por ter perdido o pai cedo, sempre pensei nesse tipo de recordação que vamos amealhando de terceiros como um presente precioso que deve ser guardado com carinho. Às vezes, mostrado pra quem tiver interesse. Porque também elas se perderão quando a outra ponta da memória, a nossa, dos que ficamos, desaparecer, como será inevitável.
E é por isso que os guardo comigo. Como as memórias que tenho do Paulo, meu fictício “primo”, o “segundo melhor goleiro da família Moreira”.
Foto da Capa: Nilton Santolin