Quando desaguei no século XX, trazia uma bolsinha no pescoço, ou cisto branquial, resultado do terceiro ou quarto arco branquial que não se fechara. Significa que nasci com o vestígio palpável de uma antiga cartilagem de peixe – a ciência aponta que carregamos informações genéticas de todas as etapas da vida, desde as origens deste planeta e talvez até mesmo dos quase 14 bilhões de anos do universo, que são ativadas conforme a evolução de cada espécie. Foi necessária uma cirurgia para remover o cisto do meu pescoço; mas restou uma cicatriz de oito centímetros que atesta o meu peixe interior.
Os arcos branquiais de um embrião até a idade adulta rastreiam as origens das mandíbulas, dos ouvidos, da laringe e da garganta; e esses arcos constituem um guia para a profunda ligação com nossos ancestrais peixes. No início do desenvolvimento da região branquial de um humano e de um tubarão, por exemplo, há saliências e protuberâncias iguais. Nos peixes, as reentrâncias acabam por fim se abrindo para formar os espaços entre as guelras por onde flui a água. Nos humanos, normalmente, as reentrâncias se fecham. No meu caso, ao menos uma não fechou.
Os quatro arcos branquiais formam o mapa de referência para as partes principais da cabeça, desde os nervos cranianos mais complicados até aos músculos, artérias, ossos e glândulas em seu interior. O terceiro e o quarto arco são, em nós, estruturas que utilizamos para falar e engolir; nos tubarões, partes dos tecidos sustentam as guelras e, portanto, a respiração. Recém-nascida, mamar deve ter sido um exercício de cuidado e paciência no aprender a engolir sem forçar meu pescoço cortado. Talvez por isso minha ligação com a comida tenha um sentido quase santo, de veneração. Para mim, a verdadeira refeição constitui um evento, gostaria de poder sempre revesti-la de rituais e beleza, do cultivo e o preparo à mesa. Também só prezo o alimento com uma origem natural, sadia; busco só comer o que já viveu plenamente.
Meu peixe interior também me imprimiu um amor genuíno pela água e o oceano. Já tive acesso psicológico ao universo – qualquer dia conto essa história – e pude observar profundamente nossa ligação com a água. São memórias que ficaram impressas – essas memórias milenares impressas em nosso cérebro, que conseguimos traduzir, talvez nos definam humanos –, mas não se manifestavam ao nível da minha mente mundana, até o meu encontro com o tubarão em Fernando de Noronha.
Mergulhar nas águas da ilha é uma experiência de êxtase, com sensações se desdobrando na visualização de tanta beleza e variedade de peixes, tartarugas, arraias, lagostas, etc. Mas quando avistei o tubarão abaixo do meu corpo, deslizando suave, majestoso, foi como transcender este mundo, foi Ser em harmonia com o enorme animal. Flutuávamos juntos, unidos em nossa história biológica, irmãos com uma profunda ligação ancestral. Minha sensação foi a de uma paz imemorial.
No retorno de Fernando de Noronha, as memórias começaram a clarear através de sonhos negligenciados: de respirar embaixo da água e ficar perplexa com essa capacidade, de ser golfinho nadando e saltando em pura alegria, de ser castor construindo uma represa num rio lindíssimo que corria manso, de jantar em um local absurdamente moderno no fundo do mar… E, então, desaguei no elemento água a bordo de minha mente mundana, me valendo da escrita para narrar nossos corpos no livro O gênio poético e agora nestas colunas da Sler.
Foto da Capa: Montagem