Todo mundo quer ter um corpo perfeito!” A afirmativa parte de um fisiculturista famoso nas redes sociais por suas postagens de treinos exaustivos e dicas sobre felicidade, vida saudável e rejuvenescimento imediato. Com mais de 15.000 seguidores, ele é reconhecido como grande celebridade e se destaca entre os milhares de influenciadores digitais que se apresentam ora como personal trainer, ora como coach fitness, e que propagam discursos de sucesso pautados unicamente na estética corporal, algo que mais parece uma novena capaz de produzir milagres instantâneos.
Mas, o que significaria realmente um corpo perfeito? O corpo “malhado” e com excesso de músculos salientes? O corpo “definido” ou “torneado” a partir de um modelo padronizado pela mídia-marketeira? Ou o corpo “escultural”, que mais parece plastificado, devido à quantidade de intervenções cirúrgicas? Do que exatamente se fala nos tempos atuais: de saúde e qualidade de vida ou de idealizações acerca da juventude e vida eterna, pelas quais se nega a velhice e se renega a morte?
Através do fenômeno disseminado pelas redes sociais, pode-se colocar em análise esses quatro adjetivos utilizados à exaustão como forma de qualificar o substantivo corpo. E é engraçado que sempre que escuto alguém pronunciar “quero um corpo malhado”, lembro das vacas que enchiam os currais de minha infância. Elas também eram malhadas. Contudo, o fato em si não as diferenciava em destinos ou valores de compra e venda estabelecidos pelo mercado. Todas eram transformadas em carne disponível ao consumo.
Entre os humanos, tal regra não tem se mostrado diferente. Basta observar a dinâmica das vitrines virtuais que, nas formas de aplicativos de namoro e/ou encontros fortuitos, também oferecem carnes. Vive-se atualmente a era do “Quick Sex”, onde partes específicas dos corpos são exibidas e valoradas por tamanhos, centímetros, polegadas, cor da pele, firmeza e estética. É quase um esquartejamento de corpulências que mais lembram os frigoríficos, fundamentais na cadeia de abastecimento do mercado de fast food.
Já o termo “definido” me leva a pensar sobre quem define ou estabelece não apenas a forma e os contornos, mas também o uso e o usufruto de nossos corpos, que devem se revelar sempre fortes, desejáveis e, acima de tudo, produtivos. Nesta direção, a expressão “corpo torneado” me parece inicialmente errônea por derivar de um verbo transitivo que significa dar forma cilíndrica, tornar roliço ou arredondar algo. Todavia, o termo assume também o sentido figurativo quando usado no gerúndio, onde “tornear” indica uma ação em andamento, especialmente quando se busca o aprimoramento, o refinamento ou o polimento de uma peça. É nesse sentido que o corpo é transformado em objeto, peça ou coisa possível de ser moldada.
No universo fitness-erotic-fashion, “tornear” torna-se sinônimo de tonificação e modulação. E a lógica aqui lembra as linhas de produção fabril, mais conhecidas como linhas de montagem, que neste caso fabricam corpos homogêneos, reforçados com musculaturas mais rígidas, fortes e livres da flacidez. Vive-se a era da fabricação de corpos pasteurizados, visando maior desenvoltura, movimentação, durabilidade e resistência. Corpos transformados em peças, objetos de consumo, mercadorias em série, através das ações específicas e repetidas oferecidas por academias de ginástica e clínicas de estética.
Por sua vez, a expressão “corpo escultural” nos remete diretamente ao sentido de perfeição, produção de algo sublime e divinal, talvez somente alcançado por Michelangelo em sua famosa obra renascentista Davi. E talvez, neste sentido, os profissionais da indústria de corpos perfeitos se apresentem ou se intitulem como pretensos artistas, muitos inclusive, de gostos, ofícios e caráter duvidosos.
Desta forma, penso que essa noção de corpo malhado-torneado-definido-escultural, em todas as suas expressões e implicações comerciais, somente traz à tona a existência de um mercado perverso, configurado na forma de indústria da beleza e da estética. É essa mesma indústria que vende ilusoriamente o mito da eterna juventude, pelo qual se estabelece a produção de corpos detentores do desejo, do charme, da elegância, dignos dos olhares cobiçosos e da inveja de tantos. E, logicamente, é esse mesmo mercado que surge por trás de transtornos mentais e psicológicos como a Anorexia, a Bulimia e a Vigorexia, caracterizados por distúrbios alimentares e dismorfia muscular.
É esse mercado que estimula e incentiva, inclusive, a adoção de atitudes extremadas e perigosas na busca incessante pelo corpo idealizado, não por si mesmo, mas pela lógica mercadológica. Um corpo que em essência não existe, não é real ou possível de ser alcançado, ainda que se suponha real. E esse parece ser o grande problema ao se perseguir o mito.
Em qualquer dicionário da língua portuguesa, o mito é descrito como alusivo a personagem, fato ou particularidade que, não tendo sido real, simboliza, não obstante, uma generalidade que deve ser admitida. Refere-se também a coisa ou pessoa que não existe, mas que se supõe real; coisa somente possível por hipótese; quimera ou utopia. Pelo senso comum da cultura ocidental, diz-se ainda que mito se refere ao que não é verdade ou possível. Ou seja, o mito é apenas mito, não é real, é mentira. Faz parte do fantástico, do fantasioso.
Os mitos estão presentes na história desde os primórdios da aventura humana no planeta, ora servindo como inspirações positivas, ora como fontes de angústias e ansiedades. Seja como escape às tensões e frustrações, essas “falsas verdades” têm impactado diretamente a saúde mental e emocional dos sujeitos, especialmente quando relacionados à beleza, padrões estéticos e desejos de eternidade.
Exemplo disso é o tão cobiçado elixir da juventude vendido pela indústria médica e farmacêutica, que atualmente lucra bilhões com a venda do Ozempic – originalmente criado como medicamento destinado ao tratamento da diabetes tipo 2 e controle de glicose e prevenção de complicações graves – e da Tadalafila – destinada ao tratamento da disfunção erétil e dos sintomas da hiperplasia prostática benigna. Ambos são utilizados indiscriminadamente para o emagrecimento rápido, perda de peso ou ganho de massa magra e melhor desempenho durante os exercícios de musculação, ainda que desaconselhado pelos órgãos competentes de saúde pública.
Acredito ser fundamental abordar de forma séria os riscos e as consequências para a saúde destes e de outros medicamentos vendidos como verdadeiros milagres contra a obesidade e a redefinição muscular dos corpos, fenômenos que considero da atualidade. Contudo, devido ao foco aqui proposto, a temática ficará para uma possível publicação futura.
Meu objetivo neste momento é destacar a influência do mito da eterna juventude ou da vida eterna na saúde mental, com impactos severos sobre a autoestima e o autoconceito dos sujeitos, especialmente adolescentes e jovens. Para tanto, recorro à literatura e ao cinema para ressaltar os conflitos gerados na autoimagem e demais autorrepresentações do Self, que de forma simplificada pode ser entendida como a forma como uma pessoa se representa para si mesma. Maneira como o sujeito se imagina e se percebe, bem como transmite essa mesma imagem aos outros (SOUZA NETO, 2020).
As autorrepresentações do Self dizem respeito a como uma pessoa se vê internamente e como externaliza tal percepção de si, seja através dos próprios pensamentos, sentimentos, crenças, valores, ações, comportamentos e linguagem, influenciando o modo de estar no mundo e de estar com o outro e consigo mesmo. Essas autorrepresentações se revelam fundamentais, inclusive, para a construção da própria identidade e da autonomia (SOUZA NETO e SOUZA, 2024).
Saliento que a escolha dos filmes não é aleatória, mas pautada em dois pontos fundamentais à discussão: a busca pela eterna juventude e o marco temporal das quatro últimas décadas, caracterizado pela maior efervescência das novas tecnologias da informação no Brasil.
Iniciamos então com “Cocoon”, que entrou em cartaz em rede nacional em 1985, com direção de Ron Howard. A história de Davi Saperstein basicamente retrata a experiência de um grupo de aposentados que vive em um asilo instalado no estado norte-americano da Flórida e que descobre uma “fonte da juventude” numa piscina de uma casa velha e abandonada, onde alienígenas armazenam seus casulos aparentemente inofensivos. Com os banhos na água rejuvenescedora, os idosos recuperam a energia vital e a força física, o que possibilita reviver a vida da juventude, regada a festas e farras noturnas. O dilema central das personagens é a escolha que precisam fazer após a descoberta da origem do milagre: entre a juventude e a vida na Terra ou a possibilidade de abandono do corpo físico e vida numa forma extraterrestre desconhecida, longe da velhice e da morte.
De modo geral, penso que o objetivo do filme é a reflexão acerca das difíceis escolhas que precisamos fazer na vida, bem como acerca das implicações correlacionadas, nem sempre conhecidas, ao se tentar subverter a ordem do ciclo vital, que não envolve apenas questões biológicas, mas também psicológicas, psíquicas e subjetivas.
Pouco menos de uma década depois, mais precisamente em 1992, Meryl Streep estrelaria junto a Goldie Hawn, Bruce Willis e Isabella Rossellini a comédia “A Morte Lhe Cai Bem”, dirigida por Robert Zemeckis. No roteiro de David Koepp e Martin Donovan, uma escritora de sucesso e bem-casada é internada em um hospital psiquiátrico após ser trocada por uma ex-amiga, famosa estrela de cinema. Anos depois, ela retorna milagrosamente rejuvenescida e ainda mais bela, com sede de vingança. A atual esposa do ex-marido descobre o seu segredo e experimenta o elixir da juventude, que traz consigo severos efeitos colaterais.
O dilema se instaura no instante em que ambas percebem que a obsessão por aparência e juventude as levou a um conflito de difícil resolução: como lidar com a imortalidade. Atormentadas, as protagonistas passam a lamentar a impossibilidade de descanso, do envelhecimento saudável e da vivência de uma vida mais plena e normal, ainda que ameaçada pela finitude.
Mais recentemente, “A Substância”, dirigido por Coralie Fargeat, estrelado por Demi Moore e Margaret Qualley, e que invadiu os cinemas brasileiros no início deste ano, traz de volta os dilemas vividos por quem busca obsessivamente pelo corpo perfeito. No roteiro, a protagonista luta contra a velhice e a baixa autoestima, exibindo as formas e os contornos estéticos de seu corpo malhado em um programa de fitness televisivo. Consumida exaustivamente pela mídia, que exige constante renovação, ela é inesperadamente demitida. Perdida em si mesma, talvez por cultivar apenas a aparência, a antes inspiradora Elizabeth Sparkle luta por um recomeço. Decidida em seu intento, resolve participar voluntariamente de um experimento científico clandestino que promete a replicação de células humanas para a criação de versões mais jovens, aprimorando a si mesma. Os conflitos surgem quando a protagonista descobre que precisará dividir o tempo de existência entre as suas duas versões – a real e a idealizada, produzida em laboratório.
Apesar de não gostar do filme, acredito que o mesmo nos serve ao retorno reflexivo acerca do velho conflito entre o Eu Real e o Eu Ideal, conceito proposto por Carl Rogers (1977), bem como postulado anteriormente por Freud (2004) sobre o Eu Ideal e o Ideal do Eu. E, neste sentido, acredito que a arte imita muito mais a vida do que vice-versa. O filme, extremamente atual, explora num misto de comédia e terror algo comumente presente nos discursos de coaches, fitness e personal trainers que invadiram as redes sociais com fórmulas de sucesso rápido e, muitas vezes, sem comprovação científica ou compromisso ético com a verdade e a saúde dos seguidores.
Tais postagens resumem-se basicamente a estímulos e apelos emocionais para a construção de um corpo perfeito – “sua melhor versão”. E, como no filme, o que se vê na atualidade é a propagação de conflitos emocionais e psicológicos entre sujeitos frustrados perante a constatação do mito. Esgotamento físico e mental, exaustão emocional, frustração com a imagem e a estética, distúrbios alimentares, dietas arriscadas, sofrimento, ansiedade e angústias fecham o quadro patológico dos que se perdem em si durante o exaustivo processo de “esculturação do corpo”. Corpo que se transforma em embalagem vazia, sem conteúdo, porque os sentidos foram perdidos.
Essa ideia de construir sempre a sua melhor versão é perversa e altamente nociva [e às vezes letal], especialmente para quem não tem consolidada a construção da própria versão. É meio que: se nem sei quem sou, como poderei ser quem nem sei quem gostaria de ser? É preciso lembrar que a distorção da autoimagem afeta diretamente o autoconceito – quem sou a partir do reconhecimento e da valoração das próprias competências, nas variadas dimensões que me constituem – físicas, intelectivas, cognitivas, emocionais, sociais, materiais, espirituais, sexuais, afetivas e amorosas. Clareza do autoconceito é a base para a estabilidade da autoestima, que nada mais é do que o valor afetivo que atribuo a mim mesmo a partir do reconhecimento destas mesmas competências. Ou seja, quanto mais distorcido o autoconceito, mais baixa a autoestima (SOUZA NETO, 2020).
O conflito com a autoimagem parte verdadeiramente de uma idealização de ser quem, ou o que, o outro gostaria que eu fosse. Então, é o desejo do outro que passa a nortear minha ação, minha vida e existência. E, neste emaranhado de confusões, não se vive para si, mas puramente para e pelo olhar do outro. Chega-se assim a uma espécie de crise entre criador e criatura, no melhor estilo Frankenstein. Os filmes em questão, na minha percepção [prefiro deixar claro], nos convidam a reflexões constantes e necessárias acerca das atrocidades cometidas pelo mercado da beleza e indústria da estética, bem como sobre as próprias disposições em assumir as consequências da idolatria à aparência física e à possível eternidade.
Costumo dizer que a vida é feita de escolhas. E cada sujeito precisa reconhecer o preço que se paga por cada decisão tomada. Ou seja, entre o sim e o não, entre o ficar e o ir, entre o aceitar e o não aceitar, entre o fazer ou não, envolvido em cada questão a ser decidida, paga-se um preço. A questão é escolher qual preço se quer pagar; ou ainda, qual preço se pode pagar em determinado momento. A resolução dos dilemas humanos está no reconhecimento das próprias responsabilidades quanto às decisões tomadas. É reconhecer o lugar em que se quer estar; o que se quer ou não para si mesmo; e decidir mudar quando julgar necessário. O resto, só psicoterapia! Até porque autoajuda e coach só contribuem mesmo para mudar a vida [financeira] dos ditos influencers de carteirinha.
Epitacio Nunes de Souza Neto é psicólogo, psicoterapeuta e professor universitário. Possui doutorado em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Doutorado em Psicologia pela Universidad del Salvador (USAL) de Buenos Aires, Argentina. Possui também mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Todos os textos da Zona Livre estão AQUI.
Foto da Capa: Gerada por IA.