Nesse último final de semana, fui assistir a uma amiga apresentar-se com sua escola de circo. Ela pratica lira, nome dado ao meu velho conhecido bambolê. Mas, ao contrário de usá-lo ao redor da cintura, nessa modalidade circense, o bambolê – agora lira – fica pendurado e a artista se pendura e faz movimentos com esse aparato. Minha amiga falou o ano inteiro sobre sua paixão pela prática, sobre como tinha vontade de treinar todos os dias tamanho o prazer que sentia. Sábado eu vi isso tudo. Ela parecia uma chama de fogo consumindo aquele arco suspenso no ar. Era visível a força, mas também a flexibilidade e a suavidade que os movimentos requeriam para se adaptar àquela esfera rígida e flutuante. A música escolhida por ela a dedo acompanhava os movimentos e eu chorei.
Chorei de emoção por ver uma amiga realizar sua paixão e ter a coragem de se expor a diversas pessoas. Uma amiga que vejo se desdobrar e se contorcer na vida de uma maneira singular e indomável desde que começamos a conviver com maior frequência. Emoção em ver a filha e as sobrinhas dela ao meu lado, assistindo com os olhos brilhando e (espero eu) pensando como ser mulher é lindo, como o corpo feminino é um milagre. Ela cabia dentro de um bambolê com uma leveza que parecia impossível. Tudo era dela naquele instante, o mundo cabia dentro daquele bambolê.
No dia anterior, fui a um aniversário onde encontrei outra amiga que me relatou pela primeira vez, passados muitos meses, sobre seu mais recente término de relacionamento. Detalhes à parte, uma frase dita por ela para descrever a dor pela qual passou me tomou e fiquei pensando muito nela: “O que me doeu foi que ele roubou alguma coisa em mim quando foi embora”. Sim, todos que já tivemos o privilégio de dizer que amamos e/ou fomos amados sabemos (ou deveríamos saber) que amar pressupõe dar algo de si sem garantia alguma de que esse algo será preservado ou devolvido como um retorno de mercadoria caso o relacionamento não vingue. Mas eu entendi que ela falava de algo mais do que esse clássico prejuízo embutido no jogo do amor. Esse algo que lhe foi roubado talvez seja o mesmo algo que eu enxerguei minha amiga preenchendo naquele bambolê. Existe algo do mundo de dentro que não deveríamos dar direito ao outro de tomar de nós e, ao mesmo tempo, o outro também deveria ter o cuidado de prezar por esse tesouro sem nome e, caso o vínculo não faça mais sentido, entregá-lo de volta com o mesmo zelo com o qual recebeu – e que haja zelo no recebimento e na devolução, por favor.
Liras, bambolês, amor. Essas esferas que imitam o infinito e nas quais podemos facilmente nos perder, nos encaixar, dar loopings e cair. Mas também voar, como a minha amiga em seu espetáculo. Quanto à outra, que também voa, sei que ela logo há de compreender melhor o que de fato foi perdido e recuperar o que lhe foi tomado, ou criar novamente algo novo em si.
Quanto a mim, aprendo a viver com minhas amigas diariamente e, por ora, desço da minha lira por uns dias para descansar nesse final de ano e cuidar do meu tesouro. A vida não dá garantia nenhuma, mas estar no ar é bom demais.
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