Há 35 anos, na tarde tórrida do domingo, dia 12 de fevereiro, em Porto Alegre, era jogado o “Gre-Nal do Século” no Estádio Beira-Rio. Não costumo escrever sobre futebol, mas, confesso, não resisti a essa data e falo novamente do esporte e do Inter.
O Campeonato Brasileiro de 1988 começou bastante confuso. No ano anterior, 13 grandes clubes do País se rebelaram contra a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e decidiram organizar sozinhos o Campeonato Brasileiro, a chamada “Copa União”, vencida pelo Flamengo. Já o campeonato organizado pela CBF foi vencido pelo Sport. Clube dos 13 e CBF combinaram realizar uma decisão dos vencedores de ambos os torneios para decidir quem seria o campeão brasileiro. Esses jogos jamais aconteceram e ambos se proclamaram campeões e os tribunais deram razão ao time pernambucano.
A confusão entrou 1988 adentro, atrasando o início da competição, que começou somente em 2 de setembro daquele ano. Entre promessas que iria acabar no dia 31 de dezembro e que entraria no ano seguinte, o torneio iniciava com descrédito e ameaças de paralisação feitas pelos jogadores.
Era outro País, a capa do Jornal do Brasil daquele dia anunciava: “Constituição está pronta”. Era a Constituição de 1988 que seria promulgada pouco mais de um mês depois. A inflação passava da casa dos 20% ao mês e havia um investimento bastante popular chamado “overnight”, cujos rendimentos eram diários e batiam o índice de inflação.
A competição começou com 24 clubes divididos em 2 grupos. Nessa relação, times que há muito não frequentam a primeira divisão, como o Santa Cruz do Recife e os cariocas América e Bangu. Não por acaso, estavam entre os 4 rebaixados daquela ocasião. Como era de se esperar, o campeonato só terminou no verão do ano seguinte.
Para mim, o ano começou entre vestibulares. Eu havia terminado o então chamado “segundo grau”, estava há meses frequentando o cursinho Unificado na Alberto Bins (Régis e Sérgius Gonzaga, Ênio Kaufmann, Miltinho, Moreno, quantos professores incríveis) e fui aprovado para cursar Direito na UFRGS. Alegria total. Para o país, aquele agora distante ano de 1989 começou de forma trágica. Na noite do réveillon, um barco chamado Bateau Mouche naufragou nas águas da Baía de Guanabara, tirando a vida de 55 das pessoas que comemoravam a bordo. A tragédia chocou o País em mais uma ocasião em que a negligência cobrou seu preço em vidas.
Fui, pela primeira vez, ao Carnaval de Laguna, que ainda acontecia nas ruas do Centro Histórico e que foi tema de colunas do Antony Jojohn aqui na SLER. Fiquei em um camping e as minhas costas de hoje sofrem só de lembrar isso. Naqueles dias, acabava a ditadura Stroessner no Paraguai, que durou longos… 35 anos.
Nos dias e noites de Carnaval rolavam soltas as provocações entre colorados e gremistas. Inter e Grêmio iriam decidir uma vaga para a Copa Libertadores da América e para a final do Campeonato Brasileiro em dois Gre-Nais. Voltei de Laguna e da rodoviária fui encontrar meus amigos para assistirmos o primeiro confronto, no estádio Olímpico: 0 x 0.
Tudo ficou para ser decidido alguns dias depois no Beira-Rio. No dia 12 de fevereiro, a cidade foi tomada pelo clima do clássico. Era uma tarde quente de quase 40 graus e um estádio lotado por quase 80 mil pessoas. Como diz Michel Laub, em “O Segundo Tempo”, livro que tem como pano de fundo esse jogo: “A cidade naquele domingo era um deserto já às cinco da tarde: quase um décimo da população no Beira-Rio, o resto esperando pela transmissão na TV”.
Nas arquibancadas quentes, em que sentávamos em almofadas ou jornais sobre o cimento quente e debaixo de um sol inclemente, estou ao lado de meu amigo Jacques Schop. Paulista de passagem por Porto Alegre, entrou comigo pagando duas sociais como “acompanhante de sócio”. Eram tão poucos os sócios que tinham o privilégio de levar alguém por um valor menor. Schop conta que estar no Gre-Nal do Século virou parte de seu currículo e era o pontapé inicial para animadas conversas com gaúchos em São Paulo.
Naquele calor, eu vestia a minha regata vermelha “da sorte” e chinelos de dedos. Meus pés doíam pois haviam sido pisoteados pela multidão que abarrotava as bilheterias e quase rasgaram a minha camiseta. Em outro ponto daquele “mar vermelho”, o meu amigo e excelente advogado ambientalista Gustavo Trindade vestia uma inacreditável bermuda de veludo, o grito da moda naquele verão.
O primeiro tempo foi trágico para os colorados. Marcos Vinícius selou o domínio tricolor com “um canhão vindo do bico para arrebentar a malha e furar o teto e explodir o concreto” nas palavras de Laub, que estava sentado com um primo na parte que vestia azul na arena. O Grêmio vinha de uma longa sequência de vitórias em clássicos e esta parecia ser mais uma.
No segundo tempo, a estrela do então jovem treinador Abel Braga, que fumava um cigarro depois do outro na casamata, brilhou. Seus gritos levaram outro ânimo ao time que “foi para dentro deles”, na expressão que gostava de usar. Veio o primeiro gol do Nílson, empatando e o segundo, da vitória. Ambos em jogadas vindas dos pés dos ponteiros Edu e Maurício (ninguém falava em assistências naqueles tempos).
Como decretou a resenha do jogo na Zero Hora do dia seguinte: “O Internacional transformou uma derrota parcial com dez homens em campo numa virada com muita raça”.
O Beira-Rio enlouqueceu naquele que seria, por muito tempo, o grande jogo dos colorados da minha geração. Aquela vitória foi comemorada como um título. Voltei a pé para a minha casa, na Santana, ouvindo as buzinas em meio a uma multidão vestida de vermelho e que ia se desfazendo à medida que nos afastamos do Beira-Rio. Em poucos meses, aquela euforia foi desmanchada. Assisti, nas mesmas arquibancadas, o Bahia se sagrar campeão brasileiro em pleno Beira-Rio e a eliminação nas semifinais da Libertadores, nos pênaltis, para o Olímpia do Paraguai, prelúdio de uma década estagnada e modorrenta no Beira-Rio.
Um mês depois do jogo, eu entrava na faculdade de Direito para começar uma nova fase dos estudos e da vida, com uma Constituição que havia nascido há poucos meses e ainda era um brinquedo que seus jogadores não sabiam muito bem como manusear. Em 1989, eu votei pela primeira vez para presidente, na célebre campanha disputada por Lula e Collor de Mello e, antes, por Brizola, Mário Covas, Maluf e Ulysses Guimarães, entre outros.
A opinião pública e as ruas das capitais tomadas pelos eleitores de Lula levaram muita gente a pensar em uma virada que não veio. Collor acusou Lula de ter um possante “3 em 1”, aparelho de som com toca-discos, toca-fitas e rádio. 35 anos depois, quem nasceu depois, nem sabe o que é isso. A vitória de Collor se transformou em derrocada quando esquemas de corrupção vieram à tona e acabaram em impeachment.
O ano ainda teria os protestos na Praça da Paz Celestial, em Beijing, onde estudantes chineses exigiam liberdade e o fim do regime de partido único, com a clássica cena do estudantes solitário impedindo o avanço das colunas de tanques precedendo ao massacre daqueles jovens.
Em novembro, a queda do Muro de Berlim acelerou o rápido desmanche do bloco soviético e do então chamado socialismo real, enquanto alemães orientais passavam dias e noites vagando por shoppings no lado ocidental enquanto a sua gerontocracia e dos países vizinhos era derrubada junto com as inúmeras estátuas de Lênin.
Poucos dias depois, a Revolução de Veludo (olhe ele aí de novo) iria acabar com o regime socialista da então Tchecoslováquia, a Polônia preparava a ascensão ao poder do até então proscrito Sindicato Solidariedade. Mas a última semana do ano trouxe as imagens violentas do fuzilamento de Nicolau Ceausescu e sua mulher mostrarem que nem tudo eram flores e veludo como os elegantes tchecoslovacos, que, aliás, logo iriam se divorciar e formar dois países diferentes.
Aquele ano, misturou as maiores esperanças que foram seguidas também por enormes frustrações. A euforia da queda do Muro, as belas imagens dos tchecos balançando as chaves na Praça de São Venceslau para dizer aos soldados soviéticos para que voltassem para casa, fizeram com que os exultantes liberais decretassem o “fim da história”. Ninguém imaginaria que muitos daqueles países que gritavam por liberdade estariam sujeitos a regimes ditatoriais ou devorados por cruentas guerras civis em alguns anos.
As euforias de 1989 traziam em si a inevitabilidade das transformações e das vitórias, como os gols de Nílson. Não imaginamos que outras derrotas e decepções estavam se gestando e seriam vividas nos anos seguintes. Mas, para mim, não tenho dúvidas, tudo isso começou naquela tarde do tórrido domingo porto-alegrense..