O Cais Mauá voltou ao noticiário, agora com um plano elaborado pelo BNDES para o antigo porto de Porto Alegre. As imagens mostrando a derrubada do muro foram a grande novidade desta vez, um sonho, ou um grito sufocado dos porto-alegrenses que tanto anseiam pela sua derrubada. Este é o lado bom do projeto, o outro, ruim, é a insistência com os grandes edifícios entre o mercado e a rodoviária que mais parecem projetados para Camboriú ou Dubai. Pior é serem construídos sem a retirada do Trensurb. Quer dizer edifícios isolados do tecido urbano do centro da cidade que nem precisam do status de condomínio fechado para o serem, o serão naturalmente. Escrevi um artigo para o Caderno DOC da Zero Hora ressaltando minha posição entre animado com a parte dos armazéns e crítico com o setor das docas. Quem quiser conferir, está em Cais Mauá.
Apesar de sempre ter sido conservador em relação à retirada do muro – temia pela segurança da cidade em caso de transbordamento do Guaíba –, vi que o projeto apresentava imagens de um novo sistema de proteção, divulgadas pelos jornais, bastante simples e factível. E isso fez eu rever minha posição anterior, ficando animado com o projeto de eliminação do muro. Porém, mais adiante, outra reportagem na Zero Hora trouxe detalhes que esfriaram meu entusiasmo. Não há projeto executivo pronto, a concessionária poderá propor outras soluções, serão precisos no mínimo três anos de estudos tanto de engenharia quanto de administração de competências, blá, blá, blá. Já vi esse filme e que monstro pode sair da tela: custos maiores do que o previsto, revisão de contrato, suspenção de prazo… e a história se repetindo.
Em sendo assim, por que não ser realista e trabalhar com o que temos, de forma econômica e rápida? Que tal abrir uma série de comportas que desmaterializem o muro, dando continuidade de percurso às diversas ruas que chegam à Av. Mauá até os armazéns? Finalmente circulamos pelas ruas e não através dos quarteirões. Explico: as comportas seriam localizadas em frente de cada uma das ruas e seriam do tamanho de suas larguras de alinhamento a alinhamento, isto é, a soma dos passeios e da pista. Faixas de segurança dariam continuidade aos passeios até os armazéns. Parece simples, não? Os trechos de muro que sobrariam seriam equivalentes às quadras que lhe fazem face. Um quarteirão magro como uma linha. Para que esses segmentos de muro desapareçam também há solução, mas vamos por partes, para ficar mais claro.
A primeira comporta daria sequência à Rua da Praia eliminando o obstáculo para se chegar ao número 10 da Rua dos Andradas, endereço original da Usina do Gasômetro. Um primeiro sonho se realizando! O trecho seguinte, entre o Gasômetro e os armazéns, reparem, é um terreno largo o suficiente para ser aterrado e urbanizado paisagisticamente em forma de parque, passando por cima do muro sem que se perceba. Se quiserem fazer estacionamento ou outro uso embaixo, fiquem à vontade. No trecho seguinte, que é a Mauá, paralela aos antigos armazéns de interesse histórico, retoma-se o processo de aberturas de comportas no eixo de cada rua que chega ali. Todas, sem esquecer nenhuma, até a Rodoviária.
Para que a quadra tão fina quanto uma linha (o muro) não siga sem graça, ela seria encorpada numa medida que possa abrigar lojas, cafés, comércio enfim, que faça a Mauá ter dois lados ativos. E isso poderia ser feito tanto para o lado interno do porto quanto para o lado externo das partes do muro sobrevivente. Não sei se vocês estão se dando conta, o muro está desparecendo, sumindo dentro de um quarteirão magricela, mas cheio de atividades.
Ah, e o trânsito de alta velocidade da Mauá? Bom, porque o trânsito tem que ser de alta velocidade ali? Vamos pensar em restringi-lo? Uma sinaleira para pedestres em cada esquina para dar continuidade aos passeios transversais? Quem sabe um VLT não faz a ligação do Gasômetro à rodoviária? E aqui tocamos no trecho que falta resolver.
Rebaixar o Trensurb da Rodoviária ao Mercado é uma condição que a cidade não pode abrir mão. Aquele monstrengo é uma ofensa aos cidadãos. Muitas cidades do mundo, incluindo o Rio de janeiro, enterraram suas vias expressas elevadas. Nós também podemos!
Retirado o Trensurb, a solução de abertura do muro rua a rua seria ali implementada até com mais facilidade, pois já teríamos uma ampla faixa de terreno reservada. Mais ou menos a faixa que se estenderia até o fim da Mauá, ocupada pelas lojas e passeios.
Agora sim, com os dois lados da Mauá integrados pode-se pensar na urbanização das docas desocupadas, no aproveitamento da bela praça Edgar Schmidt. Que sejam construídos edifícios, mas em escala adequada. Que vendam apartamentos dos dois lados da Mauá, que adultos, crianças e cachorros corram na praça. Que os atuais prédios históricos sejam reciclados para uso cultural. Uma sede para o MAC? Outra para OSPA? Aí entraremos facilmente em acordo.
Prédios de uso misto serão bem-vindos se forem construídos respeitando o alinhamento das bordas do cais com altura compatível à convivência humana – oito pavimentos, no máximo, é o ideal –, que tenham comércio no térreo como restaurantes, padarias e cafés, feira orgânica ou de artesanato na praça, que tenha cara de bairro bom para morar, que lembre um Puerto Madero de Buenos Aires, porque não? Um bairro agradável à beira d’água é muito aprazível. Mas o bairro, que estou a falar, inclui o outro lado da Av. Mauá, Av. Julio de Castilhos, Voluntários da Pátria e todos quarteirões subindo em direção à Av. Independência sem descontinuidade. Já pensaram? A prefeitura planejando e a Construção Civil investindo, que tremendo bairro pode resultar? Que tal repensar esse novo bairro como modelo do que se quer para o século XXI de Porto Alegre?
Falta dizer que o que trago aqui não fecha a discussão sobre os usos dos armazéns, apenas devolve o porto à cidade fazendo o muro desaparecer sem que desapareça a sua função protetora. Também desaparece essa ideia de gestão da área do porto como se fosse um território à parte para ser cedido ou concedido a uma empresa. Não, cada armazém, cada porção pode funcionar como funcionam os quarteirões da cidade, sem um pensamento agigantador típico do século passado. As áreas abertas do antigo porto devem ser incorporadas ao território comum, como as ruas e praças de Porto Alegre. É preciso fazer desaparecer qualquer linha, ainda que política, que as separem da cidade. Armazéns, antigos galpões sem utilidade e lotes a serem delimitados podem ser cedidos e até mesmo vendidos sob condições especiais dentro de um plano de ocupação que atenda aos interesses de uma capital que quer se sentir digna de si mesmo.
Ainda falta resolver a questão de proteção contra enchente entre o muro e a borda do cais. As soluções podem ser caso a caso, numa ideia de convivência com eventuais transbordamentos do Guaíba (muito raros) como faz Veneza ou com soluções mais permanentes como a proposta do passeio elevado que o estudo do BNDES apresentou. Esta seria incrementada, em todo caso, na medida do possível, sem barrar a imediata ocupação dos armazéns. O que não podemos é entrar numa nova aventura sem projeto executivo pronto. Vale lembrar-se dos projetos básicos, indefinidos por natureza, com que a prefeitura iniciou as obras de uma série de viadutos para a Copa do Mundo de 2014 e até hoje não foram concluídos. Na sua execução encontraram rocha (que surpresa, não?) no subsolo de Porto Alegre e até um córrego, o que levou a inevitáveis renegociações de contratos, sobre-elevação de preços, aumentos de prazos e por aí vai.
Nossos governantes parecem continuar a pensar que só grandiosos e custosos investimentos podem resolver problemas. Não chegam a examinar os mais simples. Muitas das ideias aqui expostas são tão antigas que viram mudar o milênio. Podiam estar prontas e sendo usadas. Ah, os recursos! Os 490 milhões que a Assembleia Legislativa não deixou ir para as estradas federais bem que poderiam ser utilizados para redesenhar a fachada da capital do estado.