Qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade democrática assustou-se com o que aconteceu na França após a desastrosa e imprevidente dissolução da Assembleia Nacional por Macron. O fato é que aquele ato político revelou um subterrâneo social que vem ganhando cada vez mais terreno na superfície: os protofascismos da extrema direita, aqui e acolá, polarizando a política e as relações sociais.
A França, aliás, apesar de toda a tentativa teórica de criação de uma vontade política republicana, expressa num espaço público comum, se viu constantemente dividida: jacobinos x girondinos; “communards” x legitimistas; “dreyffusards” x antissemitas; resistência x colaboracionistas; Argélia Francesa X Argélia Livre… O problema é o que está acontecendo hoje com a Democracia produzindo um novo tipo de ódio social?
Um número considerável de publicações recentes, na área da reflexão política sobre nossa contemporaneidade, atesta uma inquietação intelectual crescente a respeito da democracia (e do ideário liberal). Para isto basta observar seus títulos: “Como as democracias terminam”; “A tentação totalitária”; “O ódio à democracia”; “Por que nós não amamos a democracia”; “Por que os intelectuais não amam o liberalismo”; “Os crimes da democracia”, “Os inimigos íntimos da Democracia”… O problema se agrava com o fato de que tais ameaças não provêm de uma injunção “externa” ao regime democrático, vindas de culturas ou ideários tradicionalmente avessos aos seus princípios: vem de seu “interior”! Parece, assim, que é o próprio Homo Democraticus que não suporta mais o peso de um certo estado de coisas produzido e reproduzido pela Democracia.
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Principio supondo que não seja por acaso que a TRAGÉDIA, a FILOSOFIA e a DEMOCRACIA tenham nascido no mesmo lugar e no mesmo momento (entre os séculos Vº e VII° a.C., em Atenas). Afirmaria, aliás, que das três é a tragédia que tem uma primazia, digamos, fundante! Aristóteles (Poética) define a Tragédia como a “passagem de um estado bom para um estado mau de um homem, acima do normal dos homens (quer dizer, um aristocrata) que, por ter praticado uma boa ação, cai numa situação de desgraça”, e ele considera Édipo-Rei (Sófocles) como a mais perfeita das tragédias. Diferentemente da tragédia “clássica” moderna (Shakespeare, Marlowe ou Racine), a antiga tratava de uma luta agonística entre DESTINO e LIBERDADE: aquilo que os homens podem fazer deliberadamente para dirigir suas vidas, e aquilo que está fora de seu alcance (a vontade dos deuses, a providência, a necessidade, o acaso). A Democracia é a forma “política” (na verdade, a “forma que inaugura a política” como sugere Rancière) que responsabiliza os homens pelo destino da Cidade: pode até dar tudo errado, mas agora, os deuses não podem mais ser inteiramente responsabilizados!
Desde Platão que a relação entre o saber e o governo da cidade se tornou problemática. Ele achava que, assim como não escolhemos ao acaso, no cais do porto, um homem qualquer para servir de timoneiro de nosso navio, também não deveríamos confiar no homem da multidão para dirigir os negócios humanos. Platão desejava um governo onde o “saber” (o filósofo) governaria: uma Epistemocracia. Abre-se, desde então, um dilema entre consciência e competência, entre o cidadão e o técnico. Ocorre, claro, que aquilo que esperamos do cidadão não é o mesmo que queremos do técnico: o cidadão é alguém em quem supostamente confiamos que ele avaliará as consequências morais (valor) das decisões políticas e confrontará suas opiniões com outras opiniões no interior do chamado “espaço público”; o Cidadão é aquele que pergunta “POR QUE FAZER?”. O Técnico é aquele de quem supostamente esperamos que saiba executar aquelas decisões, usando os meios adequados para a realização dos fins: o Técnico é aquele que pergunta “COMO FAZER?”, e faz esta pergunta para outros técnicos considerados também competentes. Um dos problemas da ordem política democrática é quando estes dois personagens (o cidadão e o técnico) têm seus papéis, digamos assim, trocados: quando deixamos as decisões para os técnicos (Tecnocracia) e não confiamos mais nos cidadãos como consciência judicativa, avaliando fins e valores das decisões tomadas (é o risco que se corre com a privatização individualista, a consequente defecção do espaço da palavra e da ação e com o fim do “interesse público”. Afinal, como dizia Lipovetsky, somos todos muito ocupados, temos muitas solicitações, muitas identidades a serem experimentadas e a identidade cidadã nem sempre é a mais importante! Como disse, o cidadão decide (ou deveria decidir) ouvindo os argumentos de outros cidadãos igualmente interessados nos destinos da Cidade; o técnico decide a partir de uma suposta racionalidade instrumental (adequação dos meios aos fins, sem se perguntar muitas vezes se os fins são moralmente aceitáveis. Foi isso o que o dramaturgo Bertolt Brecht discutiu na terceira versão de sua peça “A Vida de Galileu” de 1951: uma ciência nova produz uma moral também nova?
Isto nos leva a ter que examinar certas expressões bastante comuns em nosso vocabulário político-educacional, por exemplo. Expressões como gestão democrática. Gestão supõe um conjunto de instrumentos, recursos humanos e técnicos, uma burocracia racionalizada e um conjunto de princípios normativos e impessoais tais como eficiência, eficácia, produtividade, economia e resultados. Gestão é um problema de competência técnica. Já a democracia, onde diferentes opiniões se encontram e se enfrentam num lugar de visibilidade e de audição, lugar da AÇÃO arendtiana, não é coisa de competentes, mas de indivíduos conscientes do que está em jogo num debate público, indivíduos capazes de examinar argumentos, de propor, de decidir, de se colocar no lugar do outro (uma outra forma de competência, se quisermos!). Quando estas duas palavrinhas se juntam, -gestão democrática-, elas formam uma espécie de oxímoro, a junção de expressões semanticamente contrárias: é o casamento da panela de barro com o pote de ferro. Receio que o pote da gestão vai bater e a panela de barro democrática, coitada, vai apanhar!
Certa vez, Tocqueville afirmou no seu clássico A democracia na América, algo assim: “Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia se produzir no mundo: vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais que giram sem repouso sobre si mesmos para obter pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem suas almas. Cada um está como que alheio ao destino de todos os outros. (…) Acima deles se eleva um poder imenso e tutelar, que se encarrega de lhes assegurar o prazer e zelar por seu destino. Assemelha-se ao poder paterno, mas fixa-os irrevogavelmente na infância(…)”. Assim, parece que desde o século XIX já sabíamos que o futuro da democracia de massas seria esta atomização despolitizada dos indivíduos tornados “cidadãos-crianças”, e produzindo um ATOR responsável pelo ódio à democracia: o consumidor obsessivo, imaturo, narcisista e hiperindividualista! E é por isso que Rancière diz da democracia que é o ‘reino dos desejos ilimitados dos indivíduos da sociedade de massa moderna’. Mas o ATOR antidemocrático contemporâneo vai muito mais longe: para ele é este inconsequente “respeito às diferenças”, a ‘affirmative action’ que destrói o universalismo republicano, estabelece o reino universal de uma igualdade ilusória, arruína hierarquias tidas como “naturais” e tradicionais (de saber, de status, de classe, de origem, de idade…) e que, resumidamente, se expressa numa tese: a boa democracia é aquela que reprime a catástrofe da civilização democrática, que se resume, por sua vez, num dilema: ou a democracia significa uma larga participação nas coisas públicas, ou é uma forma de vida social que canaliza as energias para satisfações pessoais. O fato é que, se o totalitarismo era o Estado que devorava a sociedade, na democracia é a sociedade que devora o Estado, estendendo seus tentáculos para todo um modo de vida, das relações familiares às pedagógicas, profissionais, religiosas, amorosas, geracionais… Eis o grande risco da “tirania democrática”! E como, no fundo, não existe regime de governo que não seja oligárquico (“Todo estado é oligárquico!”, já se disse!), então é preciso que as elites sejam ‘protestantes’, quer dizer, individualistas e esclarecidas, e o povo seja ‘católico’, quer dizer, compacto e mais crente do que consciente, como atesta o pensamento das elites do século XIX, de Guizot a Renan. E a ficção que alimentamos a respeito da “soberania popular” serviu apenas para alimentar as práticas da divisão do povo que os regimes representativos desempenham tão bem.
Uma palavra, aliás, e de grande atualidade entre nós brasileiros, resume este imenso imbróglio democrático: POPULISMO. “Populismo é o nome cômodo sob o qual se dissimula a contradição exacerbada entre legitimidade popular e legitimidade científica” (quer dizer, de um saber, acima dos homens ordinários), revelando o grande e inconfessado desejo de toda oligarquia: governar sem povo! É praticamente unânime entre os autores que consultei apontar para o populismo como a grande ameaça à democracia. Populismo se oporia a elitismo, termo usado aqui com conotações pejorativas: é uma desforra da periferia contra o centro, diz Todorov.
No fundo, reina em tudo isto uma imensa vontade de eliminar a política (ou o Estado), coisa que já estava na cabeça dos nossos utopistas do século XIX, de Cournot a Marx: a política entendida como fonte de dissensões e discórdia entre os homens, aqueles “homens partidos” de Carlos Drummond, e substituí-la por uma tecnocracia. A vitória final da GESTÃO sobre a ESFERA PÚBLICA.
Foto da Capa: Tânia Rêgo / Agência Brasil
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