Entrei pela primeira vez em uma sala de universidade aos 17 anos.
Filho de uma família de classe média, o caminho que começa na pré-escola e chega até a faculdade parecia natural. Nunca havia pensado em não cursar ensino superior, obter um diploma e trabalhar na minha área de formação.
Do lado paterno, meu tio mais velho e meu pai foram os primeiros a fazer faculdade. O roteiro é bem conhecido: uma família de imigrantes italianos chega à Serra Gaúcha fugindo da guerra para tentar a vida no além-mar. Meu avô se tornou pedreiro e minha avó, dona de casa. Trabalharam duro para garantir que os filhos tivessem um melhor destino e se formassem.
Na família materna a coisa foi diferente: meus avôs, ainda que não tivessem cursado o ensino superior formal, tiveram boas condições financeiras por conta de um concurso do Banco do Brasil. Para minha mãe a conclusão da faculdade também era algo esperado.
Meus pais se conheceram na UNISINOS, no curso de Geologia. Em certa medida, devo minha existência à universidade.
Ambos haviam tentando outra faculdade antes: meu pai fez quase todo o currículo de Agronomia. Minha mãe, de Jornalismo.
Aquele adolescente que somente se descobriu canhoto quando se sentou na carteira com apoio de braço para destros não fazia ideia que repetiria a sina familiar de se encontrar somente na segunda opção de curso. Precisei de um ano de aulas de cálculo e estatística pra me dar conta que eu tinha cometido um pequeno erro semântico: a economia que realmente me interessava era a psíquica, e não a do capital.
Mas aquela primeira aula nas Ciências Econômicas foi a inauguração de uma posição crítica que cultivo até hoje. Era a disciplina de História Econômica do Brasil e, logo de cara, o professor recebeu os novatos com um longo discurso sobre o privilégio de estar cursando uma universidade.
Lembro de uma pirâmide desenhada no quadro negro (ainda era a época do giz). Nós, calouros da UFRGS, estávamos no topo desta pirâmide, representávamos um percentual mínimo da população – e isso que já estávamos na Era Lula, em que tantos e tantas passaram a ter acesso ao ensino superior devido às bolsas de estudos e, posteriormente, ao programa de cotas.
Posso dizer com confiança que ainda que eu tenha errado a minha escolha de curso na primeira vez esta minha primeira aula foi o começo da minha formação como cidadão no mundo.
Por mais que isso pareça banal para muitos dos meus leitores, tenho consciência de que só fui capaz de olhar para meus lugares de privilégio a partir do momento em que os meus professores universitários me apresentaram um mundo de contrastes e matizes em degradê.
Claro que eu não era alguém completamente alienado, mas foi a partir da palavra destes mestres e doutores que pude perceber que ter a possibilidade de fazer um curso superior, em um país em que até hoje isso é exceção, implica responsabilizar-se pela coisa pública, ou seja, que graduar-se não significa somente acúmulo de conhecimento, mas também um reposicionamento na vida.
Ou deveria ser assim, pelo menos.
Por ter sido atravessado de forma tão contundente pelo discurso crítico da universidade pública, por ter sentido na pele os efeitos da transmissão de uma visão ampla de mundo, sempre me tocou profundamente o ódio à intelectualidade veiculado pela extrema direita.
Agora que felizmente estamos um pouco mais distantes de todo este horror, me atrevo a pensar sobre o tema, pensando aqui comigo algumas explicações para tanto horror ao ensino formal.
Em primeiro lugar, vejo que a faculdade por muitas vezes, como no meu caso, é o primeiro espaço em que alguém tão cheio de privilégios tem contato com outras formas de vida que não aquela da própria família. Até o ensino médio as trajetórias tendem a ser padronizadas, especialmente em colégios que se preocupam menos com a formação e mais com o sucesso no vestibular.
É na universidade que se tem contato com teorias críticas e formas de pensamento que colocam em questão o caminho que levou o aluno até ali, o que significa, muitas vezes, o questionamento de valores familiares que até então pareciam naturais. Perceber que estes valores são contingentes, ou seja, que há outras famílias que se organizam de outras formas é um convite a que nos pensemos em nossos privilégios.
Se levarmos em conta que é próprio da extrema direita o ressentimento pela perda de um suposto lugar de centralidade no social, podemos entender por que a universidade pode parecer assim tão perigosa: frequentar um espaço em que temas como gênero, classe e raça fazem parte do currículo implica haver-se com toda uma história de violência e segregação que até então parecia banal. E, com isso, também ter de dar conta de que, direta ou indiretamente, todos nós participamos desta lógica de segregação.
Além disso, estudar significa alterar-se. Nós não somos os mesmos depois de lermos um texto ou de mergulharmos a fundo em uma obra. A leitura e o estudo nos modificam, fazem com que questionemos os alicerces sobre os quais nos construímos. E isso é apavorante para o “cidadão de bem”: pensar-se é perigoso, uma vez coloca em xeque aqueles mínimos valores morais que nos servem como referência. Não à toa, o homem médio ri sempre das mesmas piadas: deixar-se afetar por algo diferente tensiona a comodidade do lugar-comum. A intolerância e a tacanhice sempre se expressam como um bordão.
Talvez também seja por isso que a extrema direita fale tanto em “doutrinação das universidades”.
O que se espera que ocorra dentro de uma sala de aula é a pluralização das realidades possíveis, o que também significa a desnaturalização dos modos de produção e de pensamento vigentes. Suportar que a própria forma de ver o mundo é apenas mais uma, e não a única, é uma tarefa psíquica e tanto.
A dita “doutrinação” é, na verdade, o convite a que o aluno navegue pelo fora em suas várias acepções: o fora do discurso familiar de origem, o fora dos imperativos sociais, o fora da domesticação dos sentidos e do intelecto. Ironicamente, os doutrinados são justamente aqueles que, de tão alienados às suas próprias imagens no espelho, mal e mal conseguem saber que existem os outros, e que estes outros, apesar de parecer surgirem como uma ameaça, podem também vir como o alívio de um narcisismo embrutecido pelo ódio.
Como vimos nos últimos tempos, infelizmente, nada parece abalar o narcisismo doentio do “cidadão de bem”. Ou, se o faz, é ao preço de um revide estrondoso e ridículo que expõe a mediocridade de um pensamento autorreferente e, por isso mesmo, profundamente violento.
Teria sido tão melhor para o nosso país se muitas dessas pessoas tivessem tido a oportunidade de se descobrirem canhotas em um mundo todo tão brutalmente destro.
Foto da Capa: Cottonbro Studio / Pexels