Lembrei-me do filme O Regresso com a notícia do ataque à poeta e escritora infantil Roseana Murray. Três cães da raça pitbull, famintos, imbuídos de sua natureza violenta e da selvageria de seus tutores humanos, avançam sobre ela no início da manhã do dia 5 de abril de 2024. Estava a caminho da academia, na praia de Saquarema, Região dos Lagos, Rio de Janeiro. Socorrida, em estado grave, teve um braço amputado e várias lesões, uma orelha arrancada. Apreensivos, todos esperávamos o pior.
A história do lendário aventureiro Hugh Glass (1783-1833), revivido por Leonardo DiCaprio em O Regresso (The Revenant), é de tirar o fôlego. Guia da expedição do General Ashley, em épocas de conquista – usurpação – do centro-oeste americano, dilacerado por uma ursa cinzenta ciosa de seus dois filhotes. Glass foi abandonado para morrer, por aqueles que deveriam guardá-lo, pelo menos até a hora em que só lhe restasse um enterro digno. O que se presencia daí em diante é a luta heróica pela sobrevivência.
Num primeiro momento, todo o esforço pode até parecer irreal, impossível, explicável talvez apenas pelo foco cego da vingança. Mas o que faz do filme um verdadeiro manifesto à determinação humana, ou sobre-humana, pela vida, é o alimento ancestral que gerou a filosofia e, talvez, em parte e com algum equívoco, as religiões. Não é apenas ele que rasteja ferido, fraturas expostas e pústulas paradoxalmente aliviadas pela avidez de vermes. Somos todos.
Ao assistir ao filme, pensei em outras histórias: na menina, prima de uma amiga, festejava o transplante de pulmão, após toda uma infância sem ar; outro amigo, com o pai nonagenário em cuidados paliativos, o afago indiferente da resposta: ‘’Não me reconhece, mas eu sei quem ele é’’; outro apregoava prodigiosas ervas, emprestava coragem àquela que ele chamava de “eterna namorada”, em troca a ternura de um sorriso pálido, o gotejo do soro, o compasso das horas. Vivências da atividade médica, histórias de família. Em casa, em clínicas ou no frio glacial de unidades de tratamento intensivo, apesar de avanços tecnológicos (e até tendo-os, às vezes, como causa). Existências são marcadas por doenças, acidentes, abusos, abandono, traumas físicos e emocionais que equivalem ao golpe de uma patada de urso. Sobrevivem, obstinadas, admiráveis.
Roseana, 73 anos, filha de imigrantes poloneses, foi casada e teve dois filhos com o violinista José Edwin Murray Filho. André Murray, chef de cozinha, e Daniel (Guga) Murray, músico. Desde 1997, é casada com o jornalista e escritor espanhol Juan Arías Martinez. Ela tem dois netos. Além de mais de 100 obras publicadas e vários prêmios literários, Roseana é conhecida por diversos projetos de incentivo à leitura. Recebe alunos de diversas escolas em sua casa, em torno de uma mesa de café – guloseimas feitas por ela, brincadeiras e muita poesia.
À medida que passam dias nesse abril de tantas incertezas, Roseana surpreende por sua determinação. No décimo dia, ela escreve – dita para sua irmã – e publica um poema, desde a CTI do Hospital Alberto Torres, onde, segundo ela, “todos são anjos”: Um anjo varreu a tristeza da casa. Com suas asas feitas de alguma coisa que não conhecemos. Varreu como varrem ruas e praças. Juntou tudo em suas mãos, soprou, soprou, soprou.
Na cena mais antológica do filme O Regresso, Hugh Glass observa o despertar de uma avalanche numa montanha gelada. Ele apenas contempla. Sem medo, sem emoção, é parte da natureza selvagem. Lutar o bom combate, atitude que revela força onde se esperaria resignação e desistência, diferença que justifica a fé na humanidade.
Roseana sopra esperanças, é da sua natureza. Varre a tristeza com poesia. Empresta asas.
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