É bem provável que uma pessoa bem informada saiba que Karl Marx escreveu que “A religião é o ópio do povo”. Por certo, detratores e/ou maus leitores do filósofo alemão vêm nessa passagem um desprezo pelo Deus, creio que em sua versão judaico-cristã. De início, não acredito que os que professam essa crença religiosa, na sua expressão fundamentalista, estejam preocupados em legitimar, por exemplo, a fé de matriz africana, com seu panteão de deuses negros, ou hindu, com seus deuses de cabeça de elefante ou de macaco. Portanto, as más palavras contra o pensador são sempre seletivas: “aquele comunista que fala mal da minha Bíblia e de meu Deus”.
Particularmente, em que pese críticas, mesmo de marxistas de escol, quanto ao idealismo filosófico contido no excerto, acho a passagem, em sua íntegra, de uma beleza poética indescritível: “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo”. A droga tem esse duplo efeito: criadora e destruidora. Enquanto sob seus efeitos, seus consumidores podem ser bastante criativos. Gosto do livro “Confissões de um comedor de ópio” de Thomas de Quincey e, até que provem o contrário, acredito nele quando disse ter-se tornado “um comedor regular de ópio”. Os problemas normalmente surgem no “dia depois” quando chega a ressaca. Mas isso fica para outro momento.
Por que me veio à mente essa passagem? Estava viajando de férias por um país de língua inacessível a mim e conheci uma senhora que trabalhava no hotel arrumando quartos. Uma pessoa lá pelos seus 40 anos, do interior de São Paulo, sozinha há um ano naquelas terras. Seu linguajar indicava uma pessoa simples e que havia atravessado o Oceano Atlântico, como ela disse: “procurando trabalho e sustento”. Foi boa a separação das palavras porque aqui no Brasil nem sempre o trabalho remunera o suficiente para o sustento, e nem estou falando de um sustento adjetivado, bom, digno, etc… Minha esposa, sempre simpática, ao descobrir que estávamos diante de uma brasileira, imediatamente entabulou uma conversa, o básico: “olá”. “Olá”. “A senhora é brasileira?”. “Sou”, “De onde?”. “De São Paulo, e vocês?”. Do “Recife”. Daí para as dificuldades de nossa trabalhadora imigrante foi um pulo. Relato de solidão, a língua que tropeçava na boca, a falta de amizade que implicava no não aprendizado da comunicação e a impossibilidade de comunicação que impedia a criação de relacionamentos. Um círculo vicioso.
Nas despedidas, ela sempre muito simpática e creio que feliz de ouvir seu idioma, nos disse: “Aqui é muito difícil. Só Deus mesmo para ajudar. Estou me agarrando com ele”. Bem, a religião tem esse benefício aos que creem com sinceridade, proporciona o alento, o conforto, o dormir em companhia de um Amigo, “o ânimo de um mundo sem coração”. A crença em Deus, deus ou deuses, pode ser apenas consoladora, mas também foi estopim de grandes manifestações de insatisfação das massas contra seus opressores. Talvez seja isso que nos falta hoje: uma orientação intelectual que canalize nosso descontentamento em direções socialmente transformadoras.
Fábio André de Farias é desembargador corregedor do Tribunal Regional do Trabalho da Sexta Região (PE).
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Foto da Capa: Jader Paes / Agência Pará