Em 1989 tivemos a primeira eleição direta para presidente da República no Brasil, depois de quase três décadas de uma ditadura cruel, que torturou, matou, segregou, caçou direitos da população em nome do “saneamento” do país. Saneamento? A palavra adequada é repressão porque nessa “limpeza” muitas pessoas foram presas, assassinadas e outras tantas precisaram fugir do país. Falava-se em “higiene”, o que era uma mentira porque por baixo dos panos o país vivia a maior sujeira capitaneada pelos militares. Mas enfim fomos às urnas escolher o sucessor de José Sarney que, por um golpe do destino, substituiu o presidente eleito de forma indireta, Tancredo Neves, que morreu em abril de 1985.
Na eleição de 1989, concorriam políticos influentes – Mário Covas/PSDB. Paulo Maluf/PDS. Ulysses Guimarães/PMDB. Leonel Brizola/PDT. Luiz Inácio Lula da Silva/PT. E outros menos conhecidos como Roberto Freire/PCB e Fernando Collor de Mello/PRN, o famoso “Caçador de Marajás”. A eleição, fortemente polarizada, foi realizada em dois turnos. Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello chegaram ao segundo.
Lula, metalúrgico, representava as forças políticas de esquerda e recebeu apoio dos movimentos populares e sindicais. Defendia um programa de mudanças na estrutura socioeconômica em busca de um modelo socialista. Collor, de família de políticos tradicionais de Alagoas, vinha amparado pelo PRN, partido insignificante que recebeu apoio das forças conservadoras de direita, em nome de interesses retrógrados, como o grande latifúndio, até interesses de grandes industriais e banqueiros.
A Campanha eleitoral de 1989
Na campanha, Collor usou todos os recursos disponíveis, que podemos chamar de apelo demagógico, para derrotar o adversário. Com estilo personalista e exibicionista, passava a imagem de um político que lutava contra a corrupção. Virou o “caçador de marajás”, referência a sua oposição aos políticos e servidores públicos que recebiam salários extremamente altos. Era o candidato dos mais pobres, os “descamisados”, como chamava. Ao divulgar falsas ideias sobre o adversário e um provável cenário político com a vitória de Lula, conseguiu amedrontar a população. Na área econômica, seu programa de governo era neoliberal e previa uma extensa reforma do Estado, privatização de estatais e abertura da economia à competição internacional. Collor venceu a eleição com 35 milhões de votos. Lula obteve cerca de 30 milhões.
A economia e a governabilidade
O Ministério da Fazenda foi ocupado por Zélia Cardoso de Mello, que colocou em prática o chamado Plano de Reconstrução Nacional ou Plano Collor. No início do governo, foram tomadas medidas econômicas drásticas, de grande impacto, para solucionar a grave crise da hiperinflação. Salários e preços foram congelados. E depósitos bancários confiscados por 18 meses. A inflação ficou sob controle por um período, mas a recessão e o agravamento da crise econômica afetaram a popularidade do presidente. No Congresso Nacional, perdeu apoio parlamentar com o consequente enfraquecimento político do governo.
Denúncias de corrupção
Com a queda da popularidade, somada à forte erosão da base parlamentar de apoio, Collor passou a ser alvo de denúncias de corrupção. Vários ministros e assessores, além de sua esposa, a primeira-dama Rosane Collor, foram acusados de desvio de verbas públicas. Em maio de 1992, um desentendimento familiar levou seu irmão, Pedro Collor, a revelar um esquema de corrupção no governo, comandado pelo então tesoureiro da campanha presidencial, o empresário Paulo César Farias.
O Congresso Nacional foi pressionado a instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito/CPI para investigar as denúncias. O relatório final apontou vínculos entre o presidente e Paulo César Farias. Em seguida, foi aberto o processo de impeachment, o que paralisou o país por meses. Nas ruas, setores organizados da sociedade começaram a se manifestar pedindo o afastamento de Collor. As maiores manifestações eram promovidas por estudantes universitários e secundaristas, que ficaram conhecidos como “caras pintadas”, por conta das listras verdes e amarelas no rosto.
A renúncia de Collor
Enfrentando a oposição de parlamentares e manifestações de rua expressivas, Collor ficou isolado política e socialmente. Em uma sessão histórica, no dia 29 de setembro de 1992, o Congresso Nacional aprovou o impeachment. Para evitar o constrangimento, Collor renunciou em 30 de dezembro. Pela primeira vez na história republicana brasileira, um presidente eleito pelo voto direto foi afastado por vias democráticas.
(Fonte do texto acima – Artigo que li na época do cientista social Renato Cancian, mestre em Sociologia Política e doutor em Ciências Sociais, autor do livro “Comissão Justiça e Paz de São Paulo: gênese e atuação política – 1972-1985”, além de várias anotações em agenda).
A delicadeza perdida
Nessa época, em 10 de dezembro de 1990, vi um programa sobre Chico Buarque na TV Manchete e me dei conta, mais uma vez, do país em que vivia – O país da delicadeza perdida. Violência, miséria, injustiça social, impunidade e abuso estavam impregnados na pele do Brasil e já não nos espantávamos. Nossos olhos não viam o desespero de tantos olhares e a apatia de milhares de rostos. Nossos ouvidos não estranhavam o atordoamento de algumas vozes e o silêncio da maioria. Falávamos o óbvio. Repetíamos frases feitas, ou calávamos. Nosso corpo absorveu o cansaço de corpos famintos e desesperançados que cruzavam ruas em busca de quase nada. Nossa consciência latejava, mas logo dávamos um jeito de amortecer. Nosso amor não resistia ao menor contratempo.
Estávamos quase sem fôlego, mas sonhávamos com o amanhã estimulados pela arte que desafiou a repressão.
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Hoje, ao reler este texto escrito no final de 1990, me dou conta de que no final da década de 1960, início de 1970, sacudimos a impotência e fomos atrás dos nossos sonhos e possibilidades. Impulsionados pela arte, cantamos com Chico Buarque “Apesar de você / amanhã há de ser / outro dia”. Cantamos com Caetano Veloso “Caminhando contra o vento / sem lenço / sem documento”. Cantamos com Gilberto Gil “Domingo no Parque”, o lazer de trabalhadores que acaba em tragédia. Cantamos com Milton Nascimento “Mas é preciso ter força / é preciso ter raça / é preciso ter gana sempre”. Tantas e lindas vozes nos estimularam para o mergulho nas causas além de nós em busca de horizontes mais claros.
Novos e difíceis tempos vieram, mas não desistimos porque já havíamos recuperado a identidade, a delicadeza e a dignidade.
Foto da Capa: Lula e Collor - Wikimedia Commons
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