Revisitar a música de Bebeto Alves é rever parte de várias das questões com as quais um artista se deparou dos anos mil novecentos e setenta até hoje. Já que situamos Bebeto no tempo, vamos também situá-lo no espaço.
Estamos falando de um compositor nascido em Uruguaiana, em fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina. Em 1970, mudou-se para Porto Alegre. Fundou algum tempo depois com Ricardo Frota e Reinaldo Frota o grupo Utopia. O som, um rock meio progressivo, violões, violino. Um verso dessa fase: “nos setenta que serão dez”.
Em 1978, participou do disco Paralelo 30, que marcou e afirmou na cena musical de Porto Alegre diversos nomes de peso. Numa das músicas, Bebeto pergunta numa sonoridade de milonga moderna, com letra em português e espanhol “que se pasa?” Nessa canção, sua singularidade se destaca. É mais do que uma mistura. É uma música nova no cenário brasileiro, a música de um garoto com formação também roqueira, trazendo o sotaque e o som da fronteira oeste.
Em 1981, lança o disco Bebeto Alves, recheado de pérolas dessa estética anunciada por ele na participação no Paralelo 30. Entre elas, o hino De um bando: “enquanto se fizesse luta, se saberia/somos um bando e muitos outros”.
Até aqui, o caldo da década de setenta, debaixo da ditadura, temperado pelo movimento pós-hippie e a contracultura. A utopia, nome da sua primeira banda, a integração latino-americana como arte e como resistência, o sentido da luta coletiva.
Virou a década. Com a abertura política e a perspectiva da redemocratização, com a entrada no mercado fonográfico brasileiro de novos competidores trazendo uma estrutura de marketing mais ativa, com o coletivo agora com seu lugar no cenário político, as questões individuais começam a aparecer com mais ênfase. Em vez do bando, o eu e seus desafios, a felicidade pessoal, a afirmação profissional num mundo do cada um por si, a alegria possível.
Em Notícia Urgente, Bebeto pede ao “Seu tocador de rádio” que coloque entre um chorinho, um rock, um baião e um xote “a minha milonga, que diz assim/compadre, saudade/tô aqui no Rio/tá fazendo frio/acabou meu charque/meu fumo de rolo/meus cobres, meus réis/me mande os papéis de votar”.
Na sequência, títulos sintomáticos de cada contemporaneidade: Novo País, Pegadas, Danço Só, Devoragem. Clássicos como “Flash”, “Pegadas”, “Uma canção”, entre outros.
Estávamos no camarim do Teatro Dante Barone, na Assembleia Legislativa de Porto Alegre, em 2017, esperando para cada um fazer sua participação na homenagem ao compositor e cantor Pery Souza. Eu cantei com Kleiton e Kledir uma parceria minha com o Pery, gravada pela dupla no álbum para crianças Par ou Ímpar.
Durante a espera, o violão rodava de mão em mão. Bebeto tocou e cantou em sessão privê para nós uma canção nova sua, Tira Mancha. Depois de listar uma série de objetos e produtos usados para limpeza, a letra diz assim: “Vai, vai limpar o dia/matar os germes da hipocrisia/Vai, puxa a descarga/manda tudo de ruim/por água abaixo”.
Bebeto se foi há pouco. Que a limpeza anunciada por ele não tarde a acontecer de vez.